Reciclando idéias - Assuntos diversos sobre a Criação



Obs.: O Blogger tem alterado as formatações dos textos. Logo, não estranhe as diferenças nos tamanhos de fontes. Cansei de tentar resolver isto...



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Sob a paternidade de São José...


Neste dia de São José e sob a influência da carta apostólica Patris corde, quero propor a reflexão através de duas animações de Steve Cutts que promovem um olhar cruel - e verdadeiro! - sobre a humanidade e suas relações com a Criação. A nossa decadência talvez não seja sentida no dia a dia, mas quando ampliamos o olhar, dá para ver o quanto estamos errando nesta governança. Teremos condições de mitigá-la? 

Crescei e multiplicai-vos... A nossa responsabilidade para com as próximas gerações não pode ser eximida. Já pensou nisto, enquanto vive suas práticas de fé? Que a busca pelas virtudes devem contemplar como você se relaciona com a Criação?



Man, 2012.
De certa forma, uma visão infernal ao fim...



Man, 2020.

Deixo aqui uma oração a São José, para que sob a sua paternidade, saibamos utilizar melhor nossos talentos para a governança da Criação.


Orações a São José 

por São Pio X 

"Glorioso São José, modelo de todos os que se dedicam ao trabalho, obtende-me a graça de trabalhar com espírito de penitência para expiação de meus numerosos pecados;

De trabalhar com consciência, pondo o culto do dever acima de minhas inclinações;

De trabalhar com recolhimento e alegria, olhando como uma honra empregar e desenvolver pelo trabalho os dons recebidos de Deus;

De trabalhar com ordem, paz, moderação e paciência, sem nunca recuar perante o cansaço e as dificuldades;

De trabalhar, sobretudo com pureza de intenção e com desapego de mim mesmo, tendo sempre diante dos olhos a morte e a conta que deverei dar do tempo perdido, dos talentos inutilizados, do bem omitido e da vã complacência nos sucessos, tão funesta à obra de Deus!

Tudo por Jesus, tudo por Maria, tudo à vossa imitação, oh! Patriarca São José!

Tal será a minha divisa na vida e na morte. 

Amém."




"Ó glorioso São José, a quem foi dado o poder de tornar possível as coisas humanamente impossíveis, vinde em nosso auxílio nas dificuldades em que nos achamos. 

Tomai sob vossa proteção a causa importante que vos confiamos, para que tenha uma solução favorável.

Ó Pai muito amado, em vós depositamos toda a nossa confiança. Que ninguém possa jamais dizer que vos invocamos em vão. Já que tudo podeis junto a Jesus e Maria, mostrai-nos que vossa bondade é igual ao vosso poder.

São José, a quem Deus confiou o cuidado da mais santa família que jamais houve, sede, nós vos pedimos, o pai e protetor da nossa, e impetrai-nos a graça de vivermos e morrermos no amor de Jesus e Maria.

São José, rogai por nós que recorremos a vós".

(19.03.2021)
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Sobre o consumo de peixes às sextas-feiras


Fugindo um pouco sobre práticas de fé, mas sem ir tão longe assim, indico um guia do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (FUNBIO) sobre o consumo - sustentável - de pescado marinho para você que, como eu, faz de todas as sextas-feiras (no mínimo!) como dias "sem carne". Já ajudávamos no combate das emissões de gases do efeito estufa e nem sabíamos, hein?!? 😁

 

Escolha, sempre que puder, as espécies que correm menos risco de extinção e cuidado com aquelas que podem desencadear a misteriosa "Doença de Haff" (urina preta), pois os casos no Brasil têm aumentado. 

E não se esqueça, cabeçada católica, que todas as partes que podem ser aproveitadas devem sê-lo... Não gosta de comer tal parte e vai descartar? Honre ao menos a vida do animal que morreu para te alimentar e as das pessoas que trabalharam para que chegasse até você, e lembre-se que muitos famintos comeriam esta parte se pudessem: faça um bom caldo e congele para usar numa futura sopa ou pirão.

Não é papo de "Avatar", mas de coerência com a sua co-responsabilidade por toda uma cadeia de impactos ambientais sobre a Criação feita APENAS para te satisfazer (a partir do seu livre-arbítrio em consumir tal coisa ou ser).

Assim você não desperdiça nada. Sua alimentação, mais do que ser para sobreviver, também é um "ato político", pois suas escolhas impactam várias esferas. Já pensou nisto? No quanto elas colaboram para a contaminação do mundo e pioram as vidas dos mais fracos, pobres e marginais?


Obs.: Ainda nada encontrei sobre pescado de água-doce e irei atualizar a postagem quando for possível. Todavia, serei honesta, pois com a qualidade das águas continentais do país, creio que tirando os pescados de regiões muito específicas e de criadouros, é um risco à saúde humana seu consumo. 

Não que os marinhos não o sejam, vide os nano e microplásticos, mas no pescado de água-doce o risco é maior devido a uma concentração de disruptores endócrinos que estão contaminando todos os ecossistemas e que são oriundos de nossas atividades domésticas (uso de medicamentos diversos e descarte inadequado destes), industriais e agropecuárias. 

Nenhum tratamento de efluentes domésticos e/ou industriais e nem os tratamentos de água para abastecimento retiram os disruptores endócrinos dos efluentes lançados nos rios pós-tratamento, pois as legislações - nas três esferas governamentais - ainda não estabeleceram como isto deve ser feito. Para se estar em "conformidade legal", basta atender aos padrões de lançamento de efluentes determinados apenas para alguns parâmetros.

(06.03.2021)

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Encontrei um texto lindo ao revisar a fonte que usei para a Memorabilia porque não havia me dado conta que ao traduzir o texto, havia esquecido de conferir as siglas dos livros bíblicos... Enfim, há males que vêm para um bem e eis um texto "O Homem Bom" do Pe. Francisco Faus que foi disponibilizado - gratuitamente - pelo site Clerus.org sobre o que é um homem (mulher) bom (boa). Me fez lembrar o mito do brasileiro cordial, quanto a uma suposta afabilidade e propensão à gentileza, mas que trata realmente das relações de afetos e interesses "cordiais" (afeitos ao coração) para o bem próprio.

Boa leitura!


HOMENS BONS
 
por Francisco Faus

Uma das impressões mais gratas e indeléveis da vida é ter conhecido um homem bom. Quando evocamos a figura de pessoas que nos marcaram pela sua bondade, sentimos um misto de admiração e agradecimento. Encontramo-las na vida, talvez tenhamos tido a fortuna de conviver com elas e, sempre que as recordamos, brota-nos de dentro o impulso de pensar ou de comentar: “Esse, sim, era um homem bom!”

Mas se nos perguntam por que dizemos de certa pessoa que é “boa”, possivelmente nos será difícil expressá-lo em poucas palavras. Talvez só consigamos descrever alguns traços dessa bondade que tanto nos toca, dizendo: é alguém que trata bem a todo o mundo, tem um coração grande, é compreensivo, prestativo, solícito..., seus sentimentos são puros e generosos... Ficaríamos, porém, com a impressão de não termos sabido exprimir cabalmente o que sentimos, da mesma maneira que não poderíamos explicar a luz do sol limitando-nos a descrever a incidência de alguns dos seus raios na folha verde, no azul de uma janela ou no rosto de uma criança.

Em todo o caso, deixaríamos clara uma coisa, e é que consideramos boa uma pessoa que, dotada de especiais qualidades morais, exerceu sobre nós uma influência benfazeja. Pois acontece que a bondade é captada sobretudo pelos seus efeitos. Talvez não saibamos dizer com exatidão o que é, mas certamente sabemos que uma pessoa boa nos faz bem.

Com efeito, a bondade, quando existe, nota-se pela sua irradiação. Este é um ponto essencial para captarmos o que é e o que significa.

Sempre que há alguma irradiação – tanto nos seres físicos como nos espirituais –, é porque há “algo” que projeta o seu influxo. Do nada, nada irradia. Só a matéria incandescente é fonte de claridade e de calor. Da mesma forma, a ação benfazeja de um coração sobre o nosso só pode proceder de uma qualidade interior desse coração. O próprio Cristo fala-nos da bondade como de um tesouro interior do qual podem ser extraídas riquezas que beneficiam os outros: "O homem bom tira boas coisas do seu bom tesouro; e o mau homem tira más coisas do seu mau tesouro" (Mt 12, 35).

O que é, porém, esse tesouro? Para início de reflexão, e antes de procurarmos uma resposta, muito nos poderá ajudar delimitarmos previamente as diferenças que separam a bondade aparente – falsa bondade – da bondade real.
 
 
A BONDADE APARENTE

 
Todos conhecemos pessoas que estão cercadas de uma auréola de bondade. Têm fama de bons. Parentes e conhecidos costumam referir-se a elas dizendo: “É tão bom!”... Mas, não raro, começam a frase que assim os qualifica com um adjetivo: “Coitado, é tão bom!...”, e acompanham o comentário com um sorriso de condescendência. Logo adivinhamos o que se esconde por trás do adjetivo e do sorriso: uma “bondade” que está unida à falta de firmeza de espírito e de força de caráter. Uma bondade mole e superficial.

Não é que essa “bondade” seja uma “pose” ou uma atitude hipócrita. Não se trata, no caso, de uma pessoa que finja sentir o que não sente. Trata-se de homens ou mulheres que têm bom coração e uma natural inclinação para facilitar a alegria e o bem-estar dos outros. Mas a sua bondade é frágil, inconsistente. Não é autêntica porque se apóia sobre dois pilares falsos: um temperamento complacente e um sentimentalismo brando.

Essas pessoas “bonachonas” – só “bonachonas”, não “boas” – fogem instintivamente de qualquer tipo de conflitos ou estridências. Detestam cordialmente brigas e desavenças. Gostam de agradar a todo o mundo e, por isso, tendem a concordar com tudo, a ceder em tudo. A sua maior aspiração consiste em estar em paz com todos e gozar do apreço geral. Sempre nos darão razão – mesmo que não a tenhamos –, contanto que com isso nos sintamos satisfeitos e não nos criem, nem lhes criemos, perturbações.

O “bondoso superficial” parece compreensivo, mas é apenas tolerante. Não é quecompreenda”, isto é, que entenda profunda e amorosamente os outros, para assim ajudá-los. Simplesmente, concorda com tudo para ganhar, com a sua condescendência, a estima alheia.

O “bondoso superficial”, o “bonachão”, quer ser amável, mas não ama. Não passa de um fraco, que não sabe dizer “não”. Por isso, os que com ele se relacionam, sabem que, no fundo, não têm um amigo, nem um pai ou uma mãe que os amem na plena acepção da palavra; têm somente um cúmplice muito conveniente.

A criança mimada, que diz “papai é mau” sempre que este a contraria, não se cansa de dizer que a avó é “muito boazinha”, porque lhe consente todos os caprichos.

É claro que tais bonachões não são bons. E não o são precisamente porque não nos fazem bem. A bondade, ou comunica um bem – um valor que aumenta a nossa qualidade moral –, ou não é bondade.
 
 
AS TRAIÇÕES SENTIMENTAIS
 

Os falsos bons, na realidade, passam a vida alimentando com ramos odoríferos a caldeira do nosso egoísmo, sem reparar que, querendo deixar-nos felizes com a sua brandura, nos fazem deslizar cada vez mais para o abismo da nossa infelicidade. É um fato que só o amor e a verdade nos realizam, e o egoísmo nos destrói.

Por sua vez, o bondoso sentimental é ele próprio um egoísta. A sua máxima aspiração é “ficar bem”, “ser agradável”, “ser simpático”. E, em troca de granjear o nosso apreço, não hesita em abençoar a mentira e acobertar o mal.




O filho ou um amigo estão à beira de desmanchar o casamento por motivos fúteis? Jamais passará pela mente do “bonachão” estender-lhes a mão com sacrifício, ajudá-los a reagir, passar um mau bocado para tentar que reconsiderem o mau passo que estão prestes a dar e enfrentem o dever. Preferirá observar tudo “sem interferir”, e achará por bem comentar docemente: “Deixa, ele tem o direito de ser feliz”. 

Uma vez consumada a catástrofe, que pode ter conseqüências irreversíveis – especialmente para os inocentes, para os filhos –, o nosso homem “bom” limitar-se-á a sacudir a cabeça e a comentar: “Vamos torcer para que dê tudo certo”.

É o mesmo que, enganando miseravelmente a sua consciência, deixará passivamente que a filha se envolva com amizades bem pouco recomendáveis, porque não quer atritos e – além do mais – é muito incômodo carregar a etiqueta de “pai antiquado e tirânico”. Por isso, não será nem tirano – no que fará bem – nem pai – no que fará pessimamente. E quando estourarem as conseqüências lamentáveis da sua omissão, chorará lágrimas mansas e se consolará dizendo: “A juventude atual é difícil, é diferente da juventude dos meus tempos”. Mas a filha já estará moralmente aniquilada.

Os bons sentimentais e vazios são os protagonistas constantes do que poderíamos chamar a “anti-parábola” do bom samaritano.

Na parábola evangélica relatada por São Lucas (Lc 10, 25-37), o bom samaritano encontra estendido na estrada um judeu que acaba de ser assaltado por ladrões e que está ferido e meio morto. Que fazer? O judeu é seu inimigo – pois, como é sabido, judeus e samaritanos se odiavam –, e portanto o problema não parece ser da sua conta. Vencendo, contudo, essas barreiras, decide-se a atendê-lo. E faz tudo para assisti-lo e curá-lo. 

Primeiro, limpa-lhe as feridas, suavizando-as com óleo e purificando-as com vinho; depois, carrega-o na sua montaria e instala-o numa estalagem, adiantando o dinheiro necessário para que tratem dele. As suas ocupações obrigam-no a afastar-se por umas horas, mas logo volta à hospedaria para certificar-se de que não faltou ao enfermo nenhuma assistência. 

Cuidou dele em tudo, resume Cristo. Por isso, o bom samaritano fica no Evangelho como a imagem perfeita da bondade movida pelo amor.

Pois bem. Imaginemos – caricaturizando a cena – o que teria feito um samaritano “bonachão”. Não é difícil descrever a “anti-parábola”, pensando em tantos homens “bons” que infelizmente andam pelo mundo. Chega ao pé do ferido e sente-se impressionado. “Coitado!”, exclama, e acrescenta: “Neste mundo acontece cada coisa!” Acocora-se junto dele, dirige-lhe um olhar terno e limita-se a “consolá-lo”: “Dói muito? Vai ver, não há de ser nada”. Nem cogita de intervir no caso: se pegar nele para cuidá-lo, pode “machucá-lo” ou pode “comprometer-se”. 

Limita-se, por isso, a dar-lhe uma afetuosa palmadinha, a colocar-lhe um pano bem almofadado debaixo da cabeça e a afastar-se comovido com os seus próprios sentimentos, ao mesmo tempo que murmura baixinho: “Acho que assim vai sentir-se melhor”. Naturalmente o ferido, envolto em tanta “bondade”, morrerá poucas horas depois. É possível que o “bondoso” deixe ainda alguma esmolinha para o enterro.

Ironias à parte, qualquer pessoa lúcida é capaz de compreender que isto é o que fazem conosco os bonachões de que estamos falando.
 
 
A BONDADE REAL
 

Retomemos uma idéia anterior. Bom, de verdade, é somente aquele que nos faz bem, e o bem é acima de tudo o valor moral e espiritual de uma pessoa. Portanto, bom mesmo é somente aquele que nos ajuda a ser melhores.

Quando já vivemos um bom pedaço da vida e olhamos para trás, contemplamos um vasto panorama de vicissitudes diversas, de erros e acertos, de perigos que nos ameaçaram, de dúvidas que nos paralisaram, de alegrias e tristezas. Mas, no meio dessas lembranças, todos nós podemos ver brilhar uns pontos de luz que jamais esqueceremos: pessoas que, no momento em que mais precisávamos, nos fizeram bem: “Fulano – dizemos – ajudou-me muito”, “significou muito para mim”; “graças a Sicrano, consegui superar um problema grave (ou uma crise ou um estado de ânimo) que poderia ter-me arrasado”... Mesmo sem darmos por isso e sem dizê-lo explicitamente, estamos falando de “homens bons”. 

Inconscientemente, possuímos a convicção de que foram bons, para nós, aqueles que nos despertaram para ideais mais nobres, que nos deram a mão para levar-nos a encontrar um sentido mais alto da vida, que iluminaram as nossas escuridões interiores fazendo-nos compreender aquilo por que vale a pena viver.

Em suma, foram “bons” os que nos elevaram a um maior nível de dignidade moral e nos ajudaram a ser melhores, mesmo que para isso tivessem precisado, em algum momento, de fazer-nos sofrer. Contribuíram, em suma, para que descobríssemos e abraçássemos o bem, e não se contentaram com deixar que nos “sentíssemos bem”...

Se, para tanto, foi necessário que nos aplicassem uma enérgica e paciente “cirurgia”, não duvidaram em fazê-lo, mesmo sabendo que, de início, não os compreenderíamos. Souberam ter a coragem – pensemos, por exemplo, nos pais e educadores – de dizer-nos serenamente “não” e de manter essa sua posição, em defesa do nosso bem, ainda que nós a interpretássemos como teimosia prepotente e irracional. Passado o tempo, compreendemos e agradecemos o que essa energia amorosa significou para nós.

O homem bom recusa-se a tomar como princípio de comportamento o infeliz ditado segundo o qual “aquele que diz as verdades perde as amizades”. Pratica a lealdade sincera quando o nosso bem está em jogo. Certamente, não confunde a sinceridade com a franqueza rude, que se limita a lançar-nos em rosto os nossos erros e defeitos em tom áspero e acusatório. 

Mas arrisca-se de bom grado a ser incompreendido, a ser tachado de moralista e de intrometido, quando percebe que precisa falar-nos claramente, caridosamente mas sem ambigüidades, e não hesita em praticar aquela excelente obra de misericórdia que consiste em “corrigir o que erra”, a fim de levá-lo a encontrar a retidão do caminho moral.

Calar-se, deixando o barco correr... e afundar-se é, sem dúvida, mais cômodo. Alhear-se, ou até mostrar-se conivente com os erros alheios, atrai benevolências e simpatias. Mas é uma forma covarde de omissão e uma triste colaboração com o mal.
 
 
ESBOÇO DO HOMEM BOM
 

Homem bom é, pois, aquele que exerce sobre nós uma influência benfazeja, uma influência que tem como efeito elevar-nos, ajudar-nos a alcançar uma maior altura moral.

Por isso, o homem bom tem, principalmente, uma qualidade: o dom de despertar-nos do sono espiritual, da letargia moral, da mediocridade e da acomodação. É alguém que nos impele a “olhar para cima” e nos ajuda – sobretudo com o seu exemplo – a ver a bondade como uma meta acessível.

O ambiente que nos cerca leva-nos facilmente a ser medíocres. Os idealistas são poucos, e não raro parecem ingênuos ou tolos, se os compararmos com muitos dos que vemos triunfar ou, pelo menos, singrar na vida: os egoístas, os espertos e os aproveitadores. Com efeito, aspirar a pautar a vida pela honestidade, pela fidelidade, pelo mérito, pelo desprendimento ou pela sinceridade – para falar apenas de algumas facetas do ideal moral – pode ser algo de muito belo na teoria, mas dá a impressão de ser muito pouco útil na prática, pouco eficaz na luta pela vida. Na “selva” do mundo, parecem apagar-se as fronteiras que separam o “bom” do “bobo”.

Daí que, lá no fundo, muitos prefiram ser “como todo o mundo”. E se um idealismo maior lhes bate às portas da alma, afastam-no com desconfiança: não vamos complicar a vida – dizem –, não vamos ser tolos, é mais garantido ficar na “média, como todos fazem; os Ícaros que pretendem voar muito alto com asas de cera acabam despencando ao chão.

Até que, numa hora qualquer da vida, deparamos com um homem bom. O primeiro choque que experimentamos ao tomar contacto com ele é o desconcerto. Começamos a vislumbrar nessa pessoa algo de inexplicável – pois foge aos padrões habituais – e, ao mesmo tempo, de estranhamente atraente.

Percebemos que é alguém que pensa de maneira diferente, vive de maneira diferente. Acredita em valores mais altos, abraça-os com serena convicção e não vacila em pautar por eles a sua vida. Prescinde tranqüilamente do que a maioria considera imprescindível para ser feliz: o egoísmo interesseiro, o comodismo, o culto do prazer e do bem-estar, o jogo de pequenos e grandes enganos para obter vantagens... 

Abraça com firmeza a honestidade, a dedicação desinteressada, o sacrifício, o amor serviçal, a renúncia voluntária, para fazer felizes os outros... Parece estar a um milímetro da utopia, da loucura ou da estupidez. E, no entanto, deixa-nos a impressão indestrutível de ser infinitamente mais alegre, mais realizado e vitalmente mais rico do que a massa anódina sobre a qual, mesmo sem o pretender, ele se eleva.

É por isso que o homem bom nos obriga a olhar “para cima” e também “por cima” dos nossos esquemas mentais e das nossas opções rotineiras. É como que uma bandeira que incita a entrar por caminhos novos, caminhos que lá no fundo da alma nós desejaríamos trilhar para curar o coração cansado de sábias espertezas e de prudentes mediocridades. E, com o seu exemplo, vem a dizer-nos que esses caminhos são possíveis e mostra-nos o roteiro a seguir.

A limpa autenticidade do homem bom faz-nos descobrir o norte, o verdadeiro norte da vida, e para ele nos atrai. Dele irradia, sem palavras, um apelo que nos sugere: vale a pena viver assim e é possível viver assim; se nós o conseguíssemos, alcançaríamos a plenitude de paz e felicidade que sempre sonhamos e ainda não conquistamos.
 
 
BONDADE E COERÊNCIA
 

Mas o homem bom não se limita a despertar-nos para a bondade. Faz-nos acreditar nela. Todos sabemos por experiência que tudo quanto tem “cheiro de falsidade”, de hipocrisia, inspira desconfiança; e, pelo contrário, tudo o que é autêntico desperta credibilidade.

A verdadeira bondade infunde confiança precisamente porque está marcada de modo simples, sem ostentações, pelo selo da verdade. Neste caso, da coerência. Um homem realmente bom possui uma harmonia habitual entre palavra e vida, entre interior e exterior, entre vida privada e vida profissional ou social. Não tem duas caras, não tem duas vidas, não é duplo. É sempre o mesmo.

O hipócrita bem-falante pode enfeitar-se de belas frases, gestos elevados e propostas sublimes. Mas todos se apercebem de que tudo isso não passa de um balão colorido, acobertando um imenso vazio. É uma pura encenação, é uma triste farsa. Cristo chamaria a tudo isso o brilho da cal branca sobre o sepulcro de um morto (cfr. Mt 23, 27).

O homem bom, pelo contrário, se fala de valores e de ideais, é porque os vive: as suas sugestões, os seus conselhos, as suas correções – quando se trata de corrigir – têm o frescor fecundo das águas vivas que brotam do manancial da alma. São sangue do seu sangue. Por isso movem, tocam, incentivam, atraem. Transmitem o calor da autenticidade. E despertam o desejo de imitação.

Nunca deixa de nos atingir positivamente, e de nos incitar a melhorar, o exemplo ou a palavra de um homem reto e coerente. Todos nos sentimos instintivamente dispostos a levar a sério a opinião, o juízo ou o conselho de uma pessoa que mantém tranqüilamente a mesma altura moral e o mesmo grau de bondade em qualquer ambiente

Quer seja no lar, na rua, no escritório ou na roda de amigos, é sempre idêntico a si mesmo: aberto, dedicado, paciente, solícito, construtivo, alegre, cheio de fé. Não tem virtudes de ocasião ou qualidades de feira. Não é o camaleão que se adapta aos diversos ambientes com o afã de “ficar bem”. Possui um quilate moral que atravessa, sem distorcer-se, todas as vicissitudes e situações.

Seria bom que os pais pensassem nisto, pois a sua falta de coerência costuma destruir as mais belas falas. E os filhos têm um radar sensibilíssimo para captar o “fundo falso” de todos os sermões dos pais que dizem e não fazem (cfr. Mt 23, 3).
 

 
VITÓRIA SOBRE A MESQUINHEZ
 

Devemos acrescentar ainda mais alguns traços a essas qualidades que desenham o retrato do homem bom. É evidente que ser bom não significa ser impecável. Quando o jovem rico do Evangelho se atirou aos pés de Cristo, perguntando-lhe com os olhos a brilhar: "Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna?", Jesus respondeu-lhe: "Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão só Deus" (Mc 10, 17-18).

Somente Deus possui a perfeição sem defeito, em plenitude. Os homens somos todos falíveis, e os nossos melhores esforços e qualidades vão sempre acompanhados pelo contraponto dos erros, pecados e misérias. Seria, pois, uma ilusão imaginar que o homem de uma só peça que acabamos de retratar não tivesse fissuras nem brechas.

Mas, dentro deste quadro da inevitável debilidade humana, o homem verdadeiramente bom possui uma qualidade marcante: nunca o vemos dominado por fraquezas mesquinhas ou baixas. E este é um ponto importante.

O homem bom pode ter – e realmente tem – momentos de ira, de cansaço, de impaciência ou de preguiça. Mas não é escravo de sentimentos pequenos: no seu coração, nunca lançam raízes as paixões baixas do calculismo – não regateia, querendo baratear a sua doação –, da inveja, do melindre, da suscetibilidade, do ressentimento ou da vingança. 

É um homem fraco e pecador – como todos os homens –, mas ao mesmo tempo é um coração livre da triste teia de aranha que amesquinha muitas almas: o egoísmo e seu irmão gêmeo, o amor-próprio doentio. Tem um coração maior que essas misérias.

Este é outro dos motivos por que a sua bondade irradia, com um calor atraente. A mesquinhez ensombrece e degrada a bondade. Quando admiramos alguém, e inesperadamente descobrimos que está dominado por alguma dessas pequenas paixões que acabamos de mencionar, sentimos uma profunda decepção. É como se a luz divina, que até então iluminava nele ideais de grandeza, de repente se tivesse empanado.

Nobre pela sua coerência e livre de mesquinhez, o homem bom se nos revela assim em toda a sua riqueza espiritual. Só ele é capaz de harmonizar traços morais que, na maioria dos homens, apenas se encontram de forma parcial ou conflitante.

A verdadeira bondade sabe conjugar estavelmente a energia na atuação e a compreensão com as pessoas; o entusiasmo pelos ideais, trabalhos e objetivos, e o desprendimento; a firmeza de critério e a prudente flexibilidade; a equanimidade e o ardor; a serenidade e a paixão; a grandeza de alma, que não se conforma com a mediocridade, e a humildade de coração; a capacidade de ser, ao mesmo tempo, um grande despertador de inquietações – alguém que nos sacode a inércia e o comodismo – e um transmissor de paz.

Qualidades que parecem contrárias, e até incompatíveis, convivem em equilíbrio na alma do homem bom. São como as cores diversas, que se fundem numa única luz. Por isso, o homem bom deixa-nos sempre a impressão de ser um homem “completo”, em que as virtudes atingem a medida certa e compõem um conjunto de rara beleza e equilíbrio. É isso que as torna sugestivas e atraentes e incita à imitação.
 

AS FONTES DA BONDADE
 

Contudo, seria um engano pueril imaginar que esse quadro de virtudes é um dom inato, como um privilégio que a fortuna reservasse apenas a alguns eleitos. Ninguém nasce bom. O homem “naturalmente bom” de Rousseau é simplesmente um mito, que a vida, a cada passo, se encarrega de desmentir.

Certamente todos nós possuímos tendências temperamentais que nos inclinam mais facilmente para determinadas atitudes positivas: há homens naturalmente calmos, outros que são temperamentalmente mais afáveis e prestativos, outros ainda que sentem uma especial facilidade para transmitir-nos bom humor... Mas não há ninguém que possa atingir o conjunto das virtudes que constituem a bondade se deixa levar-se apenas pelas suas inclinações naturais

Ao lado de tendências positivas, em todo o homem coexiste um molho de tendências negativas. Não é em vão que todos trazemos na alma as marcas hereditárias do pecado original, que nos inclinam para o mal.

Já dizia Tertuliano, o escritor africano do século II, que “o cristão não nasce, faz-se”. A bondade não brota espontaneamente, como uma planta silvestre, mas forja-se na alma como o ferro trabalhado na fornalha.

Santo Agostinho, evocando reminiscências de infância, registrava que o espontâneo, no homem – desde os inícios da vida –, é o egoísmo: um egoísmo que às vezes aparece escancarado e cru, e outras mascarado de bons sentimentos e de brandura emocional. Já o considerávamos antes, e é oportuno tê-lo em conta de novo para compreendermos melhor de onde é que surge a bondade.

Qual é, enfim, a forja da bondade? Desde já podemos adiantar a resposta: a bondade é sempre resultante da graça de Deus e da luta, do esforço do homem. É nestes dois pontos que devem ser procuradas as suas fontes.

Num dos primeiros perfis biográficos de Mons. Josemaría Escrivá, recolhem-se palavras do jornalista italiano Giuseppe Corigliano que, num artigo publicado em Il Giorno de Milão, refletia sobre a bondade desse homem de Deus, sobre “a sua grande compreensão para com todas as situações humanas, a sua grande capacidade de amar e aquele garbo e simpatia que tornavam agradabilíssimo o seu trato. Conhecendo-o melhor – concluía –, intuía-se que aquela grande capacidade de tratar tão intimamente todas as pessoas era fruto da sua grande intimidade com Deus. Mais do que com palavras, ensinava com os fatos que quem possui uma fé autêntica é mais humano, conserva maior capacidade para compreender a vida e as coisas belas e justas deste mundo” (Salvador Bernal, Perfil do Fundador do Opus Dei, Quadrante, São Paulo, pág. 194).

Lembrávamos antes que o encontro com um homem realmente bom produz em nós, já de início, um sentimento de surpresa. Ficamos intrigados, tentando achar resposta para uma série de perguntas que a sua bondade suscita: de onde lhe vem essa paciência e afabilidade, unida a uma firme coerência de ideais? De onde tira as forças para não se deixar abalar, desanimar ou corromper pelo ambiente que o cerca? Qual a razão da alegria com que pratica a renúncia e se sacrifica pelos outros com um sorriso? Que força interior o move?

A explicação desses enigmas sintetiza-se numa só palavra: Deus. Só Deus é bom (Mc 10, 18), e os homens são bons na medida em que vivem com Deus e de Deus. Por outras palavras, a bondade é comunicada à alma pela união com Deus através da fé e do amor. Quando um homem crê, e faz da fé princípio de vida, quando vai ganhando uma amorosa intimidade com Deus, quando se abre à graça divina, esse homem se “diviniza”, vai-se tornando semelhante a Deus (cfr. 1 Jo 3, 2). E então atrai precisamente por isso, porque – mesmo carregando com inevitáveis imperfeições – é uma “transparência de Deus”.

Conta-se, na vida de São João Maria Vianney, o Cura d'Ars, que certa feita um homem descrente se uniu aos peregrinos que acorriam à cidadezinha de Ars, para ver e ouvir o santo sacerdote. Movia-o a curiosidade, e estava com a idéia preconcebida de desmascarar o prestígio daquele que se lhe afigurava um embaidor de beatas. Teve oportunidade de contemplar de perto o santo, e o simples fato de vê-lo, ouvi-lo e cruzar os seus olhos com os do pobre pároco revolveu-lhe profundamente a alma. 

Quando lhe perguntaram a sua opinião sobre o “palerma” que fora observar como se fosse uma curiosidade de circo, só soube responder, com a voz embargada: “Vi Deus num homem”.

Este é o primeiro e principal segredo da bondade. Poderíamos dizer que o homem bom é como um metal, fundido, purificado e modelado na forja de Deus. A graça divina é o fogo dessa fornalha. Mas a graça exige correspondência. De nada serviria se faltasse o esforço, o “martelar” sincero do homem por modificar os seus pensamentos, sentimentos e ações, e a luta por reformá-los, com decisão e empenho, de acordo com as exigências do amor de Deus.

Não há bondade sem luta. Contando sempre, e em primeiro lugar, com o auxílio da graça, só se torna bom aquele que – por assim dizer – começa por ser “mau” consigo próprio, isto é, por combater decididamente, um a um, todos os desvios – hábitos, defeitos – que o egoísmo tende a enraizar no coração. É preciso insistir neste ponto: não existe bondade se não há uma árdua peleja interior, uma constante mortificação, um “não” enérgico ao egoísmo. Como lapidarmente diz Caminho, “onde não há mortificação, não há virtude”, não há bondade (Josemaría Escrivá, Caminho, n. 180).

E é evidente, por outro lado, que esse combate não se restringe ao interior do homem. Não são só as paixões egoístas que hostilizam os ideais da bondade, pois é preciso enfrentar também a pressão do ambiente, da mentalidade e dos costumes sociais que – como uma enxurrada envolvente – se opõem a cada passo aos ideais da bondade e às virtudes cristãs. 

Por isso, o homem bom tem necessariamente que ser um forte, dotado de firme coragem para se manter fiel aos seus valores, mesmo que estes choquem com o ambiente e suscitem incompreensão.

Somente como resultado dessa luta fiel é que surge, do pobre barro humano, o que São Paulo chama a criatura nova (Ef 4, 24), que se vai configurando conforme a imagem de quem o criou (Col 3, 10). Quem se esforça por ser bom, acaba realizando em si mesmo – modelado pela graça de Deus – a mais pura definição do homem: imagem e semelhança de Deus (Gen 1, 26). E, por isso mesmo, acaba refletindo na sua vida, como num espelho, a mais simples e bela definição de Deus: "Deus é amor" (1 Jo 4, 8).
 

BONDADE E AMOR: ABRIR-SE AOS OUTROS

 
Ninguém é bom, ninguém é bondoso para si mesmo. A bondade dirige-se sempre aos outros: somos bons para alguém. Homem bom é aquele que está, de modo habitual e permanente, amorosamente aberto aos outros. Precisamente porque é bom – e, por isso, quer “fazer o bem” –, vive voltado para o próximo, dá-lhe valor e concede-lhe prioridade nos seus interesses. 

A bondade é sempre calor de coração, que envolve os seres humanos com uma doçura cheia de força. Vamos dedicar as próximas páginas a considerar mais de perto a bondade no seu influxo benfazejo.

Para o homem bom, os outros não são nunca estranhos. Não os enxerga nunca como inimigos que ameaçam o recinto fechado do seu egoísmo, provocando interferências e criando incômodos. Nenhuma pessoa é alheia ao mundo do seu “eu”. Os outros, sejam eles quem for, tenham os defeitos que tiverem, fazem parte do seu universo de afetos e interesses. Por isso não o aborrecem nem o surpreendem, pois tem o coração mais inclinado a amar do que a amar-se a si mesmo.

É próprio do egoísmo ver o próximo com uma ponta de reserva: o “outro” é, para o egoísta, um possível “inimigo” de que tem que defender-se ou, pelo menos, precaver-se. O egoísta tem o coração inteiramente ocupado pelo “eu”, denso e pesado como o chumbo. Admitir “outros” dentro de si significa ter de aceitar uma sobrecarga

Daí que esteja sempre com receio de que lhe perturbem os esquemas, de que lhe roubem o tempo, de que lhe tirem a tranqüilidade, de que lhe exijam renúncias; e sofre por ter que aturar defeitos aborrecidos e limitações cansativas. O egoísta é mal-humorado e impaciente. Incapaz de dar, só sabe receber.

Bem expressiva é, a este respeito, a alegoria do mata-borrão e da fonte. Os egoístas assemelham-se ao mata-borrão: só sabem absorver, dos outros, o que favorece os seus interesses, o que lhes traz vantagens ou lhes causa agrado. Acontece, porém, que essa absorção egoísta, em vez de enriquecê-los, os destrói. O mata-borrão ensopado fica inservível, desmancha-se todo, e o seu destino final é a lata do lixo.

Outros homens, pelo contrário, podem ser comparados a uma fonte. O manancial dá-se incansavelmente, ignorando o que seja reter ou sugar. O esbanjamento generoso das suas águas não só não o empobrece, como o transforma num foco contínuo de fecundidade. À sua volta, a terra árida transforma-se num jardim e as plantas ressequidas experimentam um estremecer de vida. Para a fonte, viver é fazer viver.

Pois bem, o coração do homem bom, tal como a fonte, vive a criar vida e frutos em todos os que o cercam. Não pensa que lhe tiram o que é seu – a sua paz, a sua tranqüilidade, o seu tempo, as suas energias –, porque o seu amor só sabe dizer, como o pai do filho pródigo: "Tudo o que é meu é teu" (Lc 15, 31). Tudo o que é dele está aberto aos outros, e é mais “dele” quanto mais é participado pelos outros.
 
 
BENIGNIDADE
 

Livre das sombras do egoísmo, o homem bom possui uma qualidade cativante, que é uma das suas mais expressivas características: é benigno com todos.

A benignidade é, antes de mais nada, um especial modo de ver os outros. Para expressá-lo de maneira simples, poderíamos dizer que é benigno aquele que enxerga o próximo “com bons olhos”, e isto significa que possui uma inclinação habitual para fixar a sua atenção no “lado bom” das pessoas. Dentro do seu coração, está convencido de que não há nenhuma criatura que não tenha valor. 

Percebe amorosamente que em cada ser humano, de um modo ou de outro, encontram-se as sementes, o latejar do bem. Pois todo o homem, por mais deficiente que seja, conserva – mesmo por entre as mais densas sombras do pecado – a “imagem de Deus”, uma “imagem” que pode e deve ser amada.

Dentro do avarento mais egoísta – dizia Paul Claudel –, no interior da pior prostituta e do mais indecente bêbado há uma alma imortal, santamente ocupada em respirar e que, não podendo fazê-lo de dia, ao menos no repouso do sono pratica a sua adoração noturna”. No interior do mais degradado pecador – poderíamos acrescentar – há um santo à espera de que o despertem. 

E só poderá acordá-lo o amor, o respeito e a confiança de um coração bom.
 
 
A BONDADE NÃO DESPREZA NINGUÉM
 

Uma atitude que se situa do lado contrário da benignidade é o desprezo. Quando Cristo quis desmascarar a “bondade” hipócrita dos fariseus, começou por dizer que havia uns homens que confiavam em si mesmos, como se fossem justos, e desprezavam os outros (Lc 18, 9).

O fariseu despreza precisamente porque se considera justo, porque é orgulhoso. Ao julgar-se perfeito e gabar-se das suas pretensas perfeições, considera inferiores aqueles que, em seu conceito, não as possuem: “Não sou como os outros homens”, diz, inchado de autocomplacência.

É próprio do orgulhoso manifestar uma irritada intolerância com os defeitos do próximo. Tal é o caso do homem que se aborrece porque a mulher, o colega ou os filhos são desordenados, ou distraídos e lerdos, ou pouco inteligentes, inoportunos, teimosos, rebeldes... Admirando-se a si mesmo como a um “deus”, julga intolerável que os demais não sejam “à sua imagem e semelhança”. 

Por isso, está continuamente a lançar-lhes em rosto, de modo humilhante, os defeitos que é incapaz de compreender: “Você nunca faz nada direito”, “parece mentira que não tenha um pingo de sensatez”, “não há quem o agüente”... Com essa incapacidade para a compreensão, é natural que o orgulhoso se canse, e esse cansaço em face dos demais é outra forma – não menos dolorosa – de menosprezo. 

Frases como “já chega”, “não dá mais”, “desisto de tentar”, aplicadas ao próximo, indicam que a bondade fracassou dentro do coração de quem as pronuncia. A “decepção” é a morte da bondade. Mas, vejamos com calma. Por que nos sentimos decepcionados com alguém? Será, porventura, porque o amamos? Não, certamente. É porque nos amamos demasiado a nós mesmos, porque nos adoramos como a um pequeno ídolo ridículo, e por isso exigimos dos outros as qualidades que nos satisfazem e que “servem” a nossa satisfação.

Há, por exemplo, pais que se sentem decepcionados com os seus filhos porque não conseguiram moldá-los como argila, de acordo com o modelo que idealizaram para a sua satisfação pessoal. Tinham feito, como um cineasta, o “roteiro” da vida do “filho ideal”, prevendo todas as etapas e calculando todos os detalhes. E eis que os filhos, usando da sua liberdade – e, às vezes, secundando o plano que Deus preparou para eles – rasgam o “roteiro” do pai (vai seguir a mesma carreira que eu, vai trabalhar comigo, vai ser rico e importante, etc.) e traçam o seu próprio caminho. 

Nessa altura, o pai sente que foram cortados os fios com que pretendia comandar os filhos como marionetes, e mergulha na decepção. Mesmo as mais belas opções de vida feitas pelos filhos, se estão à margem do “roteiro” paterno – por exemplo, dedicar-se inteiramente a Deus, escolher uma profissão menos brilhante, mas mais aberta ao serviço do próximo, abraçar ideais de pesquisa científica ou de arte –, parecem-lhe tolices, idealismos estúpidos que vão estragar-lhes a vida. Na realidade, estão estragando apenas os sonhos egoístas do pai.

Também nos cansamos e decepcionamos facilmente com os outros porque não corrigem os seus defeitos – defeitos reais, falhas objetivas – com a rapidez que nós desejaríamos. Uma e outra vez reincidem nas mesmas faltas, continuam com as mesmas reações, mantêm inalteradas as arestas do seu caráter. Então, desanimados, só sabemos recriminar, repetindo como um disco rachado: ele fala demais, esquece tudo, chega atrasado, não me escuta, gasta sem controle, etc., etc. 

E, ao pensarmos nesses defeitos sempre reiterados, sentimo-nos com o direito de dizer: “Isso cansa”. Daí a desistir de compreender e ajudar há só um passo, o passo que o “cansado” acaba dando quando se rende à decepção e conclui: “Não tem conserto”. Extinguiu-se então a confiança e instalou-se no coração o desprezo. Nas próximas páginas consideraremos como a confiança inabalável nos outros é um dos traços mais belos da bondade.
 
ATENÇÃO AMOROSA
 

Não desprezar. Aqui temos o que poderíamos chamar o “primeiro mandamento” da benignidade. Valorizar e confiar, esta é a versão positiva desse mandamento.

Uma das manifestações mais comoventes da bondade de Cristo é a sua infinita capacidade de prestar uma atenção amorosa e confiante a todos, mesmo aos que parecem mais pervertidos e irrecuperáveis. É uma atitude que vemos a cada passo nos relatos evangélicos, ao contemplarmos o modo acolhedor e esperançado com que Cristo encara os pecadores, os miseráveis, todos aqueles que aparecem como o rebotalho imprestável do mundo.

Há, concretamente, uma passagem do Evangelho em que essa atitude se revela com grande transparência. São Lucas pinta a cena com os traços de um drama em que intervêm dois personagens, Cristo e um fariseu chamado Simão. Ambos contemplam o mesmo fato: a irrupção inesperada de uma mulher pecadora na casa do fariseu, onde Jesus estava à mesa juntamente com outros convidados. 

E eis que uma mulher, que era pecadora na cidade, quando soube que Ele estava à mesa em casa do fariseu, levou um vaso de alabastro cheio de bálsamo. Estando a seus pés, detrás d'Ele, começou a banhar-lhe os pés com lágrimas, enxugava-os com os cabelos da sua cabeça, beijava-os e ungia-os com bálsamo (Lc 7, 37-38). Aquela pobre mulher, tocada na alma pela divina bondade de Cristo, não sabe o que fazer para expressar a sua dor, o seu arrependimento.

Dois pares de olhos fixam-se especialmente nela: os do fariseu Simão e os de Cristo. Ambos observam a mesma cena, a mesma pessoa, os mesmos gestos. Mas vêem coisas inteiramente diferentes.

O fariseu fixa na pecadora o olhar do desprezo... Vendo isto, o fariseu que o tinha convidado disse consigo: "Se este fosse profeta, com certeza saberia quem e qual é a mulher que o toca, e que é pecadora". Simão só vê o “lado mau”.

Cristo, pelo contrário, dirige à pecadora o olhar do amor benigno. Mansamente, volta-se para o fariseu e diz-lhe: "Simão, tenho uma coisa a dizer-te..." E o que Cristo vai dizer-lhe, com um laivo de tristeza, é que Simão ainda não aprendeu a enxergar com bondade, ainda não aprendeu a apreciar o valor dos outros com uma “atenção amorosa”.

"Um credor" – começa Cristo – "tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos denários, o outro cinqüenta. Não tendo eles com que pagar, perdoou a ambos a dívida. Qual deles, pois, mais o amará?" O que equivale a dizer: "Simão, onde tu vês um atrevimento despudorado, eu vejo amor. Esta pobre criatura chora a pena do arrependimento e a alegria do perdão".

E prossegue: "Vês esta mulher?..." – sim, é necessário, é importante conseguir “ver” os outros –, "vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me deste água para os pés; e esta com as suas lágrimas banhou os meus pés e enxugou-os com os seus cabelos. Não me deste o beijo da paz, mas esta, desde que entrou, não cessou de beijar os meus pés. Não ungiste a minha cabeça com bálsamo, mas esta ungiu com bálsamo os meus pés. Pelo que te digo: São-lhe perdoados os seus muitos pecados porque muito amou" (cfr. Lc 7, 40-47).

Como se percebe bem aqui o modo de olhar de Jesus! Mais do que ninguém, Cristo era capaz de penetrar no abismo de mal que o pecado cavara naquela alma. E mais do que ninguém, por ser Ele Deus – Deus feito homem –, podia sentir-se atingido pelo pecado, pois este é, acima de tudo, ofensa a Deus.

Nada disso, porém, passa para o primeiro plano no olhar de Cristo. Na escuridão do pecado que envolve a alma daquela mulher, não detém a vista no que o ofende; só vê brilhar – como a luz que cintila numa noite escura – a bondade que começa a desabrochar naquela alma dolorida. Apenas vê o “lado bom”, a raiz de bondade que está a despertar e que Ele pode e quer ajudar a crescer.

O fariseu, sem dúvida, teria expulsado asperamente a pecadora, e com isso certamente a teria ferido, teria abafado a sua esperança, tê-la-ia acorrentado, talvez para sempre, ao seu mal. Cristo estende-lhe a mão e a salva: "A tua fé te salvou; vai em paz" (Lc 7, 50).
Na atitude de Cristo encontramos matéria abundante para meditar.
 
 
O ESPELHO DOS NOSSOS DEFEITOS
 

Estamos vendo que a falta de bondade se manifesta, entre outras coisas, pela reação que os defeitos alheios provocam em nós: umas vezes, de impaciência; outras, de desprezo ou cansaço. E já percebemos que tais reações não são propriamente “provocadas” pelos defeitos dos outros, mas são “ativadas” pelo nosso egoísmo ou pelo nosso orgulho.

Talvez compreendamos melhor o que se passa conosco se percebermos que, devido ao nosso egoísmo e à nossa autosuficiência, a primeira coisa que notamos nos outros é a sombra que os seus defeitos projetam sobre o espelho dos nossos próprios defeitos. Por outras palavras, os defeitos alheios incomodam-nos precisamente porque ferem um defeito nosso. Alguns exemplos podem esclarecer-nos.

Não é raro que um marido se sinta tremendamente aborrecido quando, ao chegar a casa cansado no fim do expediente, a mulher se dedica a martelar-lhe os ouvidos com uma longa cantilena de reclamações e lamentos: o elenco das contrariedades do dia. A reação espontânea do marido é perder o bom humor: “Por que não me deixa em paz? Será que não compreende que tenho direito a um pouco de tranqüilidade após um dia de trabalho estafante?”

Aparentemente, este marido tem razão. E certamente a esposa faria bem se guardasse para si as suas queixas e se ocupasse em tornar mais amável o convívio familiar. Mas também é verdade que a reação de impaciência e desgosto do marido não nasceu do amor: a ladainha enfadonha da mulher projetou-lhe uma sombra sobre o seu comodismo, feriu o seu comodismo, e por isso o perturbou. Fosse um homem de coração generoso, e a fraqueza da mulher se projetaria sobre o espelho do amor compreensivo, e nesse caso a reação seria outra.

Poderíamos falar também da impaciência do pai que recebe o boletim do colégio do filho enfeitado de vermelhos. É natural que esse mau desempenho nos estudos preocupe o pai e até que o deixe indignado. É lógico que tenha uma conversa menos suave com o filho. Mas, ao mesmo tempo, seria muito bom que analisasse o seu coração e se perguntasse: estou reagindo só por amor ao filho, pelo seu bem, ou porque me humilha que o meu garoto seja dos últimos da classe, e isso projeta uma sombra no espelho da minha vaidade? Pode muito bem acontecer que o sentimento predominante seja este último, e então a impaciência é a reação de um defeito pessoal atingido.

O mesmo poderíamos dizer quando notamos que possuímos uma grande facilidade para “ver” que os nossos colegas são antipáticos, pouco inteligentes, maçantes e desleais..., quando, na realidade, o que “não vemos” é que estamos deixando-nos dominar pela inveja, pois o que nos aborrece é que, apesar de tantas deficiências que observamos neles, estão-se saindo melhor do que nós e tendo maior sucesso no seu trabalho.

Já dizia o Padre Vieira que “os olhos vêem pelo coração; e assim como quem vê por vidros de diversas cores, todas as coisas lhe parecem daquela cor, assim as vistas se tingem dos mesmos humores de que estão bem ou mal afetos os corações” (Sermão da quinta Quarta-feira, 1669).

Quando o coração é limpo e bom, enxerga as coisas limpas e boas do mundo, especialmente as coisas limpas e boas dos outros. Se está manchado, projeta a sua sujidade em tudo.

Se fôssemos mais humildes e esquecidos de nós mesmos, ao percebermos que as fraquezas e os erros dos outros fazem saltar como uma mola os nossos próprios defeitos, começaríamos por tentar limpar esses nossos defeitos. Um pequeno inseto pousado sobre uma ferida aberta incomoda muito. Mas se curarmos essa ferida, a presença do inseto sobre a pele sadia será quase imperceptível.

Meditando nestes aspectos, Santo Agostinho sugeria um sistema excelente: “Procurai adquirir as virtudes que julgais faltarem aos vossos irmãos, e já não vereis os seus defeitos, porque vós mesmos não os tereis” (Enarrat. in Psalmis, 30, 2, 7).

Vale a pena tentar essa experiência. Suponhamos, por exemplo, que estamos a conviver com uma pessoa ríspida. Fala bruscamente, agride com comentários, critica tudo. Isso “provoca-nos” e impele-nos a retrucar com a mesma moeda: quase sem repararmos, também nós nos tornamos agressivos e azedos. Esforcemo-nos por dar uma virada. Tentemos, como ensina São Paulo, vencer o mal com o bem (Rom 12, 21). 

Iniciemos decididamente uma campanha de paciência, amabilidade e mansidão. É muito provável que aconteçam duas coisas: primeiro, que a pessoa que nos “provoca” fique desarmada perante a nossa afabilidade, e mude; segundo, que nós mesmos, com a alma limpa de preocupações egoístas, venhamos a descobrir que aquela rispidez “incompreensível” outra coisa não era senão a amargura de alguém que não sentia reconhecido e valorizado o seu trabalho; ou então era o queixume surdo de quem tinha ânsias de um pouco mais de atenção que ninguém lhe dava. Uma vez feita essa constatação, já não veremos mais um defeito que aborrece, mas uma carência que, com carinho, procuraremos aliviar. Passaremos a olhar o problema com o calor aconchegante da bondade.

Como dizia alguém, “somente nos irritam os nossos defeitos”. As agulhadas e impertinências dos outros são “cutucões” sobre os nossos defeitos, que Deus permite para que os vejamos melhor e nos decidamos a vencê-los. Se arrancarmos os nossos defeitos, as “pedras” do nosso campo – da nossa alma –, não sentiremos mais os “pontapés” dos outros, porque não terão onde tropeçar. 

Se todos nós compreendêssemos estas verdades simples, haveria mais paz nas famílias e, em geral, no convívio humano, e muitas desavenças crônicas abririam passagem à harmonia.
 
 
DESCULPAR E ESPERAR


É impossível existir bondade sem compreensão. E é impossível existir verdadeira compreensão sem a disposição de desculpar.

Todas as vezes que julgamos uma pessoa e concluímos, como quem dita uma sentença: “Ela é assim”, “é insuportável”, “é maçante”, “é preguiçoso”, etc., estamos a condená-la. Ao fazer tais juízos, colocamos nos outros uma etiqueta, como se faz num frasco ou num inseto colecionado, e os fechamos nessa definição. 

Dizer de uma pessoa: “Ela é assim” equivale a perder a esperança de que venha a mudar. Como se partíssemos da base de que vai ser assim para sempre e de que o máximo de bondade que lhe podemos dedicar é apenas sermos pacientes, suportando-a tal como é.
Mas essa apreciação é falsa, está viciada na raiz, porque todo o ser humano tem na alma “sementes de bondade”, latentes mas reais, que podem ser desenvolvidas. 

Nenhuma pessoa consiste apenas nos defeitos que denota exteriormente. Todas têm infinitas possibilidades de bem que – com a graça de Deus, o seu esforço e a nossa ajuda – um dia podem vir a ser belas realidades. Por isso, Cristo nos manda não condenar ninguém (cfr. Lc 6, 37), como se já estivesse “acabado”.

O contrário de condenar é desculpar e esperar. O coração do homem bom está sempre inclinado a desculpar. Ao julgar os outros, evita usar o verbo “ser” – "Fulano é assim" –, e prefere empregar o verbo “ter”: "Essa pessoa, que – como todos os filhos de Deus – é potencialmente santa, agora, por uma série de circunstâncias, tem tal ou qual defeito, mas isso não quer dizer que sempre deva tê-lo"

É muito provável que uma série de dificuldades a levem a comportar-se assim. É justo tê-las em conta. Talvez seja grosseira porque não recebeu uma educação esmerada, ou arrogante porque foi humilhada e sente necessidade de se afirmar, ou impaciente porque lhe dói o fígado... Sempre há uma desculpa, afetuosa, que os “bons olhos” da bondade detectam, uma desculpa com fundamento objetivo, real, que impede que julguemos esta ou aquela pessoa com dureza e, ainda mais, que a desclassifiquemos.

Certamente os outros têm defeitos, como nós os temos, mas felizmente não estão acorrentados por eles como um sentenciado a prisão perpétua. Está nas nossas mãos – está nas mãos da nossa bondade – desamarrar-lhes esses grilhões. Esta é uma das mais delicadas tarefas do amor benigno: não deixar ninguém de lado por impossível, antes dar-lhe a mão, ajudá-lo incansavelmente – com infinita compreensão e paciência – a soltar um a um os elos dos defeitos que compõem essas suas correntes.

Naturalmente, isto pressupõe que saibamos confiar – como víamos – na capacidade de bondade das pessoas, e portanto na sua possibilidade de mudar. Já foi dito alguma vez que perder a confiança em alguém é matá-lo. Também é verdadeira a afirmação contrária: confiar em alguém é dar-lhe a vida.

É claro que essa confiança não se confunde com a credulidade ingênua, que fecha os olhos e julga que, afinal, todo o mundo é bom. A verdadeira confiança é outra coisa. O homem bom não é cego nem insensível aos valores. Não deixa de ver o mal, em toda a sua dimensão perniciosa, e chama erro ao erro, e pecado ao pecado. Mas, ao mesmo tempo, acredita com todas as suas forças que aquelas “sementes de bondade” que dormem em cada coração humano podem ser ativadas, podem ser cultivadas. 

Por isso, arregaça as mangas e, sem reclamar dos espinhos dos outros, trabalha para que neles desabrochem as rosas.
 
 
A BONDADE CULTIVA O BEM

 
O homem bom faz bem aos outros somente com a sua presença, pela força atraente das virtudes. Mas o seu influxo benéfico não se limita a isso. Acabamos de ver que tem a disposição de trabalhar, de fazer alguma coisa para que o bem desabroche nos outros. Vive, para dizê-lo em poucas palavras, a serviço do bem dos outros.

Não há dúvida de que este é um belo ideal de vida. Quem não almeja passar pelo mundo deixando, como Cristo, uma esteira de bondade, fazendo o bem (At 10, 38)? “Que a tua vida – lê-se em Caminho – não seja uma vida estéril. – Sê útil. – Deixa rasto. – Ilumina com o resplendor da tua fé e do teu amor” (n. 1). Estas palavras são todo um empolgante programa de bondade.

A este propósito, lembro-me de um livro que me causou impressão. Intitulava-se “Viveu para ninguém”, e era o romance de um homem medíocre, vulgar, que passou pelo mundo sem deixar rasto algum. Dele se poderia dizer, como um triste epitáfio, que teria dado na mesma se nunca tivesse existido. Seria penoso que um tal epitáfio se pudesse aplicar a nós.

Pois bem, é hora de nos perguntarmos sinceramente o que nós deixamos de bom nos corações e nas vidas dos que vivem e trabalham conosco. Como estamos contribuindo para o seu bem?

Comecemos por convencer-nos de que a primeira ajuda que devemos prestar-lhes consiste em não lhes criar dificuldades. Porque, infelizmente, com freqüência somos mais obstáculo do que auxílio. E o pior é que não nos apercebemos disso. Se nos dissessem: “A sua esposa, o seu filho, o seu colega, o seu pai, têm tais e tais problemas, tais e tais defeitos, e você é a causa deles”, levaríamos uma surpresa. “Como assim?”, retrucaríamos. “Eu, que tenho que sofrer esses defeitos, ainda por cima sou culpado deles?” Pois sim, muitas vezes o somos.

Tomemos por exemplo um honesto pai de família, trabalhador abnegado, daqueles que “só vivem para a família”. Trabalha em dois empregos e volta cansado ao lar. Ao mesmo tempo, tem um temperamento fechado, não é homem de muitas palavras. Os familiares vêem-no soturno e calado, e não se atrevem a interferir no seu aparente mau humor. 

Caso lhe perguntem: “Está aborrecido? Acontece-lhe alguma coisa?”, responderá, com olhar de surpresa, que não lhe acontece nada. Talvez acrescente: “Sou assim mesmo, é o meu jeito”. Ora, acontece que esse “jeito” é uma barreira. Bloqueia o diálogo com a esposa e os filhos. A mulher, sentindo-se cada vez mais isolada, sem poder compartilhar as suas fadigas com o marido, irá ficando cada vez mais nervosa e multiplicará as faltas de paciência com as crianças. 

O marido lamentará que os nervos da mulher estejam criando um ambiente pesado no lar. Mas nem lhe passará pela cabeça que foi ele quem o provocou, com a sua cômoda abstenção. Se tivesse aprendido a chegar ao lar sorrindo, acolhendo, interessando-se pelos problemas da mulher e dos filhos, teria criado condições para um diálogo amável. Teria facilitado um clima cordial, em que os nervos dos outros se dissolveriam. E haveria paz.

De modo análogo, podemos pensar no chefe de um escritório que reclama da falta de iniciativa de um dos seus subordinados: acha que é um homem sem garra no trabalho, que lhe falta entusiasmo e realiza as suas tarefas de modo rotineiro e como que a contragosto. Certamente, este não é o estado de ânimo ideal para um trabalho dinâmico e criativo. Mas de quem é a culpa? 

Pode muito bem suceder que semelhante inibição e falta de eficiência do empregado tenha sido provocada por esse mesmo superior, que nunca soube incentivá-lo, nem teve paciência para ensiná-lo, nem lhe ofereceu o estímulo de uma palavra positiva, que fizesse o outro sentir-se valorizado. Só soube cobrar e criticar. A culpa, sem dúvida nenhuma, é do chefe.

Isto é dificultar o bem dos outros com os nossos defeitos e as nossas omissões. Aí não há bondade, porque não lhes fazemos bem.
 
 
MODOS DE AMAR

 
Conta-se de um velho almirante da reserva que, quando queria pintar a fachada da sua casa – vivia numa cidade onde era costume pintá-las pela primavera –, mandava o pintor à casa do vizinho que morava em frente, para lhe perguntar de que cor gostaria que a pintasse. O bom velhinho explicava esse seu modo de proceder dizendo: “Afinal, ele, o vizinho, é quem ficará vendo a fachada todos os dias; é natural que eu a pinte ao gosto dele”. 

É uma delicada transparência do coração do homem bom, que vive sempre voltado para o bem e para a alegria dos outros, e nisso encontra a sua maior satisfação.

Isto faz pensar nas nossas atitudes e, concretamente, na facilidade com que incorremos num erro de perspectiva: com a melhor das boas vontades, dedicamo-nos a amar os outros “ao nosso modo”, mas esquecemo-nos de amá-los “ao modo deles, o que seria muito melhor.

Entendamo-nos. Não basta dizer, quando nos preocupamos em ajudar os outros: “Faço isto pelo seu bem”. É necessário ter uma fina intuição para fazer “isto” do “modo” que contribua mais eficazmente para o seu bem.

Um pai que corrige o filho, imediata e energicamente, todas as vezes que depara com uma desobediência ou uma irresponsabilidade, pode estar intimamente convencido de que atua “apenas e tão somente” pelo bem desse filho. E, caso o garoto se lhe torne revoltado, mentiroso e desleal, sentir-se-á profundamente magoado, ao mesmo tempo que se lamenta: “Depois de tantos desvelos, de tanta dedicação para educá-lo...” Esse pai, por mais que se sinta magoado e recrimine a ingratidão do filho, não está com a razão. E não está precisamente porque não foi capaz de amá-lo “ao modo dele”, isto é, procurando o “modo” mais fecundo de lhe fazer o bem.

Com isto, já estamos esclarecendo que, quando dizemos “ao modo dele”, não pensamos que o amor paterno deva acomodar-se a todos os caprichos e vontades do filho. Se fizesse isso, esse pai cairia naquela “bondosidade mole” que mais destrói do que edifica. A expressão “ao modo dele” significa, neste caso, o esforço da mente e do coração por acertar com a maneira realmente eficaz de ajudar o filho a ser melhor.

Podemos dar por certo que esse mesmo pai, se tivesse atuado com mais paciência e, sobretudo, se tivesse dedicado mais tempo a fazer-se amigo do filho, conseguiria que as suas correções fossem construtivas. É muito fácil “cair em cima” e dizer “eu tenho razão”. Já foi lembrado por alguém que, por ter razão, até agora ninguém foi para o céu. É muito mais profícuo guardar a razão, ao menos provisoriamente, no bolso, e pensar seriamente: “Como posso mesmo ajudá-lo a melhorar?”

Não tenhamos dúvida de que o pai em foco ajudaria imenso se gastasse mais algum tempo no fim do dia, e nos fins de semana, a sair, jogar bola, discutir música e conversar com o filho, tornando-se assim o seu melhor amigo. Nesse clima de amizade confiante, poderia orientá-lo e corrigi-lo, quando fosse o caso, com palavras cheias de credibilidade, já que o filho perceberia que, se o pai o contraria, não é por ser um maníaco perfeccionista nem por estar irritado, mas porque gosta dele e o quer ajudar. 

É a isto que chamamos amar “ao modo” dos outros. Uma arte extremamente necessária e certamente nada fácil. Só o amor generoso é capaz de aprendê-la.
 
 
A PEDRA PRECIOSA
 

Mons. Escrivá, um sacerdote que irradiou bondade, despertando milhares de corações para o bem, costumava dizer que cada pessoa, cada alma, deve ser tratada como uma pedra preciosa.

Não existem duas pedras preciosas idênticas, que possam ser lapidadas da mesma maneira. O bom lapidador estuda-as uma a uma, e daí tira conclusões sobre o modo de extrair o máximo de perfeição e beleza de cada uma delas.

Assim deve ser com as almas. O estudo atento do lapidador é, neste caso, a afetuosa atenção que prestamos a cada pessoa, esforçando-nos por compreender o seu modo de ser, o porquê das suas arestas e pontos frágeis, as linhas em que melhor pode ser “trabalhada”. E o modo de tratá-la, de ajudá-la, decorrerá dessa prévia compreensão.

Para tanto, não é necessário possuir conhecimentos muito especializados de psicologia. Basta a psicologia do afeto, que proporciona uma profunda acuidade aos olhos. O amor de uma mãe não precisa de manuais de psicologia para intuir, de modo certeiro, o que está acontecendo com o filho. Basta o carinho, o interesse e a vontade de se dar.

Não esqueçamos, por outro lado, que todo o bom lapidador é paciente, o que significa que tem a consciência de que, para transformar um diamante bruto num esplêndido brilhante, vai precisar de longo tempo, de trabalho minucioso, e que só pouco a pouco irá progredindo no seu lavor.

Eis aqui outra das manifestações da autêntica bondade. Assim como a bondade mole se compõe de superficiais pinceladas de amabilidade, a verdadeira bondade traduz-se numa dedicação infatigável. Dá-se sem pausa, espera sem cansaço e não desiste jamais. 

Persiste incansavelmente, sem abrandar a generosidade da entrega, até ver despontar finalmente os frutos; e aguarda confiante – permita-se-nos repeti-lo – que as “sementes de bondade” dos outros acabem por germinar. A doação de um homem bom nunca é estéril.
 
 
O TESOURO VERDADEIRO

 
Com as reflexões anteriores, procuramos desenhar um quadro da bondade atuante. Agora, olhando com perspectiva essa pintura, é necessário concluir que, dentre os traços do quadro, talvez esteja faltando ressaltar o principal.

A razão é simples. Todas as cores que se juntam para compor a luz da bondade apontam para uma única finalidade, várias vezes recordada ao longo destas páginas: fazer o bem. Por isso, o que é realmente decisivo é ter uma idéia clara sobre o verdadeiro conceito de bem. 

De nada adiantaria empenharmo-nos generosamente em fazer o bem aos outros, se, no final das contas, terminássemos por descobrir que, pretendendo ajudá-los, involuntariamente lhes fizemos mal ou, o que vem a dar na mesma, lhes proporcionamos bens fictícios e omitimos o bem real. Daí a grande importância de não perdermos nunca de vista qual é o verdadeiro bem do homem, o único bem, sem o qual nenhum dos outros merece esse nome.

A resposta a essa pergunta sobre o bem já foi dada por Cristo: Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder a sua alma? Ou que poderá dar o homem em troca da sua alma? (Mt 16, 26).

Estas palavras brilham como um lampejo no meio da escuridão. Nenhum “bem” vale a pena se a alma estiver privada da Vida da graça de Deus. Com efeito, sem a graça divina, uma alma está morta e, então, as melhores qualidades e “bens” de que possa dispor não passam de flores vistosas enfeitando um cadáver. Estando ausente a vida, “de que aproveitam” as flores?

Deveriam pensar mais nisto todos os que amam, todos aqueles que, por terem a fé cristã, são capazes de compreender a perspectiva de Cristo. Sim, deveríamos entender que “querer bem” outra coisa não é que “querer o bem” do próximo, e que não há bem algum quando falta Deus.A quem tem Deus – dizia Santa Teresa de Ávila – nada lhe falta”. A quem não o tem, podemos acrescentar, nada lhe aproveita.

É excelente, sem dúvida, o empenho dos pais em que os filhos tenham saúde, cultura, bem-estar, capacitação profissional que lhes permita enfrentar com segurança o futuro. Mas é um empenho muito mais excelente e vital – por ser decisivo, questão de vida ou morte – esforçarem-se com a sua oração, o seu exemplo e uma orientação prudente e contínua, para que os filhos conheçam as verdades da fé cristã – a doutrina salvadora de Cristo – e aprendam a praticá-las. 

Podem ter a certeza de que as virtudes cristãs de um filho vão fazer-lhe, ao longo do dia, um bem infinitamente maior do que todos os diplomas ou contas bancárias que lhes possam proporcionar. Mil vezes mais vale a fé do que a saúde, a união com Deus do que o sucesso. Só as virtudes cristãs são os tesouros verdadeiros de que Cristo falava (Mt 6, 19-20). E só esses tesouros proporcionam àqueles que amamos a “realização” – o bem e a plenitude –, quer nesta terra, quer na eternidade.

Sem esta convicção, todos os ideais de bondade se dissolvem como um sonho ilusório. Sempre deveria ecoar em nossos ouvidos, como um roteiro de bondade, o segredo que Cristo confidenciou a Marta: "Tu te inquietas e te perturbas por muitas coisas; no entanto, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada" (Lc 10, 41-42). 

A “melhor parte” é estarmos junto de Cristo, atentos às suas palavras, fazendo da Vontade de Deus a luz e o norte da vida. Aí está o verdadeiro bem do homem.

 
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Começávamos estas páginas constatando que uma das impressões mais gratas e indeléveis da vida é ter conhecido um homem bom. Ao encerrá-las com estes últimos pensamentos, talvez seja o momento de tomarmos consciência de que esse homem bom, deveríamos sê-lo cada um de nós. Afinal, foi para isso que Deus nos pôs no mundo, e a nós nos cabe – com a sua ajuda – trabalhar por consegui-lo.

Não duvidemos de que, quando o curso desta nossa vida terrena se encerrar, uma das nossas maiores alegrias será olhar para trás e ver que a nossa passagem pelo mundo não foi inútil. Valerá a pena termos vivido se, nessa hora definitiva, pudermos dizer que, pela misericórdia divina e apesar das nossas misérias, tivemos a graça de ser um reflexo da bondade de Deus nos corações dos homens.

(27.02.2021)

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Recuperar a humanidade para habitar o mundo digna e responsavel
Entrevista de Silvina Pérez, do L'Osservatore Romano, ao padre Juan Gabriel Arias, missionário argentino em Moçambique em 10.10.2020.

Todos os dias, sem exceção, um “exército” de valor incalculável e muitas vezes invisível composto por milhões de missionários e missionárias, sem outras armas além da dedicação, solidariedade e esperança, leva o Evangelho e também o Magistério e a palavra do Papa Francisco a todos os cantos do planeta. Graças a estes enviados, a nova encíclica do Papa sobre fraternidade e amizade social chegou também a Moçambique — um país duramente atingido durante décadas pela guerra, violência e pobreza — como um sopro de paz e esperança. 

«Para a Igreja em Moçambique, Fratelli Tutti faz parte de um caminho iniciado no ano passado durante a visita apostólica de Francisco. Não há dúvida de que em Moçambique a fraternidade é o complemento da paz e da misericórdia», diz Juan Gabriel Arias, um sacerdote argentino enviado pelo então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio em 2000 a este país africano, um dos mais pobres do continente e do mundo.

A sua paixão pela África tinha nascido muito antes, era fruto do seu desejo de ajudar os outros, da sua vocação como missionário de dedicar a sua vida a proclamar o Evangelho àqueles que ainda não o conhecem. Assim que pôs os pés em Moçambique, mergulhou na realidade das populações mais abandonadas e carenciadas e iniciou todo o tipo de atividades educativas, sanitárias e de ajuda social na comunidade. Acabou por se tornar uma enciclopédia viva do lugar, aprendendo as línguas locais e vivendo em lugares onde poucos conseguem chegar. A sua missão é evangelizar, mas em África o conceito ocidental de evangelização não faz justiça a essa realidade.

O padre Juan Gabriel, nesta entrevista a “L'Osservatore Romano”, apresenta a realidade de um continente frequentemente esquecido e descreve como as pessoas estão a viver ali, com solidariedade, o tempo da pandemia. Ele explica como, no meio da crise, os mais necessitados partilham com o próximo, através da Igreja, o pouco que têm. E relata também a importância para a Igreja moçambicana das reflexões feitas pelo Papa Francisco na sua nova encíclica e a forma como foi acolhida nas suas comunidades.

Como se pode definir a última encíclica do Papa Francisco?

A Encíclica Fratelli Tutti é, sem dúvida, um manifesto para o nosso tempo. Ao lê-la sentimo-nos chamados a uma tomada decisiva de responsabilidade, tanto individual como coletiva. É certamente uma encíclica para reorientar a própria vida. Perante a pandemia, a crise económica, o aumento da pobreza, a crise da representação política, as guerras sangrentas e intermináveis, as migrações e muito mais, Francisco propõe-se redescobrir e praticar a “fraternidade universal”, ou seja, convida-nos a recuperar a humanidade. 

Recuperar a humanidade não é uma alternativa, mas a única maneira de habitar o mundo de uma forma digna e responsável. São João da Cruz disse que no ocaso da vida seremos julgados pelo amor e penso que toda a civilização humana também o será. A encíclica expressa claramente a necessidade dos valores de paz, justiça, solidariedade e proteção ambiental... mas não de uma forma abstrata!

Francisco retoma no seu documento o impulso de renovação que animou o Concílio Vaticano II, começando com João XXIII e passando por São Paulo VI e São João Paulo II, onde a fraternidade indica o caminho à humanidade. Para a Igreja em Moçambique, este documento faz parte de um caminho iniciado no ano passado durante a visita apostólica, quando Francisco lançou apelos contínuos a favor da paz. Não há dúvida de que em Moçambique a fraternidade é um complemento da paz e da misericórdia. É um texto que infunde esperança!

A esperança num mundo onde, todos os dias, e não só em África, a lógica da opressão, utilitarismo e violência parece prevalecer.... Como pode esta realidade ser invertida?

A  encíclica é apenas uma advertência a que não nos concentremos em coisas passageiras, mas a dedicar a nossa atenção àquilo a que estamos destinados. A paz interior da qual Santo Agostinho nos fala não é possível se não nos esforçarmos ativamente para nos entregarmos ao outro, para falarmos com aqueles que esperam para nos ouvir. Estes são temas tratados por Francisco nesta encíclica, juntamente com outros ainda mais profundos, tais como perdão, aceitação, amizade e fraternidade.

A África continua a ser o continente menos atingido pela Covid-19 em termos de número de mortes e casos positivos. As previsões dos organismos internacionais em março e abril foram muito alarmistas...

Quando a pandemia de coronavírus surgiu, tudo indicava que os seus efeitos seriam devastadores em África. E em muitos países africanos a transmissão foi elevada, mas a gravidade e a mortalidade foram muito inferiores às previsões iniciais, com base na experiência da China e da Europa. Em Moçambique as pessoas pensavam que em África uma explosão de casos de Covid-19 como a europeia teria sido catastrófica, considerando a sobrecarga e subfinanciamento dos sistemas de saúde. 

Mas, na realidade, a letalidade do vírus é atualmente inferior à de outros lugares. Existem várias teorias sobre a razão pela qual o vírus é menos letal aqui. Algumas envolvem diferenças climáticas, imunidade preexistente, fatores genéticos e diferenças comportamentais. Então a África está fora de perigo? Claramente não. O vírus ainda está a circular e não sabemos o que irá acontecer à medida que a sua interação com as pessoas aumentar.

Mas uma coisa é clara: os efeitos secundários da pandemia serão um verdadeiro desafio para a África. Refiro-me às graves interrupções das atividades económicas e sociais, aos efeitos potencialmente devastadores da redução dos serviços de assistência que protegem milhões de pessoas, tais como vacinações regulares e programas de controlo da malária, tuberculose e vih. A pobreza, a desigualdade e a crise ambiental são alguns dos problemas que agravam os efeitos da Covid-19.

Qual foi a reação da sua comunidade eclesial à Covid-19?

As pessoas estavam mal informadas. Tive de preparar em pouco tempo 12 jovens para levar a cabo uma campanha de prevenção do vírus em todas as comunidades. A minha paróquia presta assistência a 45 comunidades que, por razões geográficas, estão divididas em 9 áreas. As distâncias entre elas são enormes e não há eletricidade. Não têm acesso à informação da Internet e da televisão. Os 12 operadores foram de casa em casa, batendo em cada porta, para dar informações sobre o vírus e deixar folhetos explicativos escritos por nós. 

O momento mais difícil foi sem dúvida a Semana Santa. A suspensão dos serviços religiosos afetou grandemente a comunidade, e além disso a proibição do governo de orar nas igrejas gerou um curto-circuito cultural em duas das nove áreas. No passado, durante a guerra, estas áreas foram as protagonistas de uma verdadeira perseguição religiosa. 

E a falta de informação levou as pessoas a pensar que, como aconteceu durante o comunismo, tinham de defender a sua fé e, por isso, reuniram-se na selva para rezar clandestinamente e defender a Igreja. Saíram de casa com os cântaros tradicionais na cabeça onde, em vez de água, colocaram os textos do catecismo. 

Lutamos para que as pessoas compreendessem que a pandemia era algo diferente. Numa das zonas mais pobres as pessoas pensavam que não podendo eu visitar as comunidades não recebia ofertas, por isso deviam ajudar-me  porque talvez eu estivesse a morrer de fome.

É um costume local que quando se vai à missa ou quando visito pessoalmente as comunidades, as pessoas que nada têm oferecem à paróquia os poucos frutos do seu trabalho nos campos: milho, mandioca e outros produtos da terra. Chamaram-me e juntaram a recolha comunitária para a paróquia, o fruto do trabalho das terras dos mais pobres. Recebi muitas mensagens dos meus fiéis e testemunhei gestos verdadeiramente incríveis.

Nunca como hoje compreendemos que estamos “todos no mesmo barco”, e que “ninguém se pode salvar sozinho”, como o Papa Francisco nos lembrou. Mas parece que, nalguns casos, a solidariedade entrou em “quarentena”...

A Igreja nunca entra em quarentena. Em muitas ocasiões, enquanto as ONG ou programas de agências internacionais enviam pessoal para situações de perigo, nós permanecemos. Geralmente todos fazem um bom trabalho, mas quando a situação se torna perigosa, é sempre a Igreja e os seus missionários que ficam

Não podemos abandonar as pessoas que estão a atravessar uma crise. É normal que com a pandemia as instituições internacionais, os países e, atrevo-me a dizer, até as famílias que ajudavam, estão a reorganizar-se, a apertar o cinto face à crise, e isto tem profundas repercussões na ajuda; nós fazemos o que podemos. Graças a Deus, o projeto de oferecer refeições, que envolve uma população de mais de 15.000 crianças, por enquanto consigo dar-lhe continuidade, mesmo se o número de pessoas que o pede e precisa dele esteja a aumentar.

Certamente  a vida complicou-se com a pandemia, mas devemos lembrar que isto é apenas uma amostra das dificuldades que virão se não agirmos decisivamente contra os fatores estruturais que condicionam o mundo, tais como a pobreza e as alterações climáticas.


Fonte: https://www.osservatoreromano.va/pt/news/2020-11/recuperar-a-humanidade-para-habitar-o-mundo-digna-e-responsavel.html

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Entrevista da rede Vatican News com Dom Maurice Piat, bispo de Port-Louis, Ilhas Maurício, sobre o acidente náutico que culminou com o derramamento de óleo no mar.

Sua voz é ouvida hoje novamente por ocasião do apelo do Papa no Angelus deste domingo para as ilhas que, com uma série de iniciativas e envolvendo os jovens, em particular, se preparam para marcar o longo Tempo da Criação de 1º de setembro a 4 de outubro, respondendo ao apelo do Papa de se engajarem em oração e ação em defesa da nossa Casa comum.


Dom Maurice Piat: - "Durante muitos meses, durante a pandemia da Covid-19, houve um grupo de religiosos muito comprometidos com a ecologia e a defesa da Criação e com a promoção de práticas que respeitem verdadeiramente a Criação e o meio ambiente. O espetáculo de ontem faz parte de uma série de concertos, organizados em diferentes partes da ilha. O de ontem ocorreu na Catedral, organizada por jovens, alguns dos quais estão fortemente comprometidos com atividades - como a agricultura orgânica - que visam a auto-suficiência alimentar, uma vez que aqui na ilha vivemos em sua maioria com alimentos importados. Em resposta a esta situação, queremos promover atividades que ensinem os jovens sobre diferentes culturas e práticas alimentares. Também iniciamos um grande trabalho de conscientização contra, por exemplo, objetos plásticos descartáveis que acabam em nossos mares e praias. Nas Ilhas Maurício, por exemplo, produzimos cerca de 100 milhões de garrafas plásticas por ano, o que é uma quantidade enorme. Também queremos pressionar o governo a legislar sobre o uso do plástico, que está se tornando uma grande ameaça para o país e para o mar. Foi também por isso que realizamos este concerto. Ao todo serão seis encontros musicais combinados com a promoção, que já está sendo feita nas escolas católicas, para a educação ecológica, para a educação ao respeito da vegetação, para usar a água com sabedoria e sem desperdícios, para promover uma nova maneira de agir."


VN: - O Papa pensou nas ilhas Maurício e falou dela ao mundo inteiro. Que efeito tiveram as suas palavras entre vocês?

Dom Maurice Piat:  - "Estamos muito gratos ao Papa por ter falado sobre as ilhas Maurício e o grande desastre ecológico que ocorreu em uma das mais belas lagoas do sul por causa do derramamento de petróleo do navio que encalhou no recife de corais. Os mauricianos trabalharam muito, voluntária e generosamente para tentar limpar a área, mas infelizmente foram feitos grandes estragos e a vida dos pescadores que vivem na costa está completamente transtornada porque tudo está ligado ao mar. E então as vidas das pessoas que vivem nas ilhas também foram transtornadas, porque há um odor que cria desconforto. Estamos muito tristes e muitas pessoas estão com raiva porque o navio foi autorizado a chegar tão perto e ninguém reagiu imediatamenteNa festa do santo padroeiro na ilha houve um momento de oração comum pelo o que ocorreu e de confiança para invocar a proteção de nosso país."


V.N.: - Qual é a situação neste momento, há alguma esperança de que as atividades possam ser retomadas lentamente?

Dom Maurice Piat: - "A pesca e o turismo serão retomados, mas somente em 4 - 5 anos que serão necessários para regenerar a terra e, enquanto isso, a indústria do turismo e da pesca estão esperando, e aqui muitas famílias dependem destes setores. É realmente um grande prova para o país e para muitas famílias nesta parte da ilha."


V.N.: - Qual é a mensagem ou apelo que o senhor sente de lançar das Ilhas Maurício à cristandade para este longo período que se abre em 1º de setembro, dedicado ao nosso próximo e à Criação?

Dom Maurice Piat: - "Gostaria de dizer que hoje, em todas as partes do mundo, temos a grande responsabilidade diante de Deus, como diz o próprio Papa, de ouvir o grito da terra e o grito dos pobres. Aqui, a nossa lagoa, nossa terra, nosso mar, gritou quando houve aquele derramamento de petróleo que danificou grande parte da terra. Percebemos, em pequena escala e de forma muito difícil, os danos que o desrespeito à Criação pode trazer. Portanto, fazemos um grande apelo, para que onde quer que estejamos, mudemos não apenas nossa maneira de agir, mas também a de pensar e estar atentos a este grande dom de Deus que é nossa Casa comum."


Fonte: https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2020-08/ilhas-maurcio-dom-piat-ouvindo-o-grito-da-terra-nos-mudamos.html?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=NewsletterVN-PT


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Sobre o Tempo da Criação

Assim como devemos limpar nossas moradas interiores de nossos pecados - os quais corroem nossas almas - que possamos realmente nos envolver nos cuidados com nossa casa comum, cuja desorganização de suas cadeias sistêmicas são fruto, majoritariamente, destes mesmos pecados individuais e também dos coletivos, sejam estes conscientes ou não. Entretanto, sou contra à mudança litúrgica para inclusão de um período específico para a Criação, pois seria confessar o desconhecimento da própria fé e a já existente abordagem.  E antes que me entendam mal, falo de liturgia, missal e não de termos um período no ano para celebrarmos a criação de Deus. Temos que ter um cuidado extremo com os modos nos quais professamos nossa fé, sem adotarmos uma visão pasteurizada, ou perderemos o rumo... (01.09.2016)

Amadureci e entendi que, ecumenicamente, o período tem caráter unitivo e hoje sou a favor do mesmo. Não tenho vergonha de admitir o meu erro e pedir desculpas publicamente. (31.08.2020)

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Precisas de um bom exame de consciência

Observa a tua conduta com vagar. Verás que estás cheio de erros, que te prejudicam a ti e talvez também aos que te rodeiam. Lembra-te, filho, de que não são menos importantes os micróbios do que as feras. E tu cultivas esses erros, esses desacertos - como se cultivam os micróbios no laboratório - com a tua falta de humildade, com a tua falta de oração, com a tua falta de cumprimento do dever, com a tua falta de conhecimento próprio...

E, depois, esses focos infectam o ambiente. Precisas de um bom exame de consciência diário, que te leve a propósitos concretos de melhora, por sentires verdadeira dor das tuas faltas, das tuas omissões e pecados. (Forja, 481)

A conversão é obra de um instante; a santificação é tarefa de toda a vida. A semente divina da caridade, que Deus depositou em nossas almas, aspira a crescer, a manifestar-se em obras, a dar frutos que correspondam em cada momento ao que é agradável ao Senhor. Por isso é indispensável que estejamos dispostos a recomeçar, a reencontrar - nas novas situações da nossa vida - a luz e o impulso da primeira conversão. Esta é a razão pela qual nos devemos preparar com um exame profundo, pedindo ajuda ao Senhor, para que possamos conhecê-lo melhor e conhecer-nos melhor. Não existe outro caminho, se queremos converter-nos de novo. (É Cristo que passa, 58)

Por São Josemaría Escrivá

(15.08.2016)

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Pira Olímpica 2016


Não sei se só eu tive esta leitura das piras olímpicas da Candelária e do Maracanã, mas além de fantásticas com o conceito do aquecimento do ar e a diferença da temperatura movimentar as pás extra-finas, tive um insight "espiritual". Está bem, sei que soa boboca, mas o movimento das pás se parece com o movimento do sol para quem já viu um vídeo da NASA e o Sol é vida... 

Meu Senhor é retratado como o sol e a segunda pira tanto pode ser vista como este, ou como um ostensório gigante diante da Candelária - cujo nome possui como origem do prefixo a espanhola: "candela" que significam vela ou tocha. E atualmente, candela é usada em nosso idioma como unidade técnica de medida de intensidade luminosa.

Mesmo que o artista não tenha desejado esta intenção, o local dá margem para que possamos enxergá-la assim. Será que concorda comigo?


Fonte: O Globo



Fonte: O Globo

(06.08.2016)

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Dá para escrever um livro inteiro sobre a nossa fé, a criação e o livre-arbítrio só com esta foto


Fonte: Rádio Vaticana

(29.07.2016)

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Papo entre amigos...


Lendo a Laudato Si' (113, 107) encontrei palavras que se alinham com o juramento que fiz na colação de grau e estas expressam muito bem algumas das coisas que acredito e que são indivisíveis. Também fiquei a me perguntar sobre o exercício de minha profissão para o benefício do Reino...

"Se a arquitetura reflete o espírito duma época, as mega-estruturas e as casas em série expressam o espírito da técnica globalizada, onde a permanente novidade dos produtos se une a um tédio enfadonho. Não nos resignemos a isto nem renunciemos a perguntar-nos pelos fins e o sentido de tudo. Caso contrário, apenas legitimaremos o estado de fato e precisaremos de mais sucedâneos para suportar o vazio".

"Assim podemos afirmar que, na origem de muitas dificuldades do mundo atual, está principalmente a tendência, nem sempre consciente, de elaborar a metodologia e os objetivos da tecnociência segundo um paradigma de compreensão que condiciona a vida das pessoas e o funcionamento da sociedade. Os efeitos da aplicação deste modelo a toda a realidade, humana e social, constatam-se na degradação do meio ambiente, mas isto é apenas um sinal do reducionismo que afeta a vida humana e a sociedade em todas as suas dimensões. É preciso reconhecer que os produtos da técnica não são neutros, porque criam uma trama que acaba por condicionar os estilos de vida e orientam as possibilidades sociais na linha dos interesses de determinados grupos de poder. Certas opções, que parecem puramente instrumentais, na realidade são opções sobre o tipo de vida social que se pretende desenvolver".

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"Juro que no exercício das profissões de Arquiteto e Urbanista, respeitando a ética profissional, lutarei para que a arte e a técnica do meu tempo, orientadas no sentido criador, possam melhor servir ao bem estar material e espiritual do homem".




. O que devem ter pensado os projetistas do conjunto arquitetônico do Vaticano? E os dos demais templos?

. O que pensam os arquitetos que projetam habitações sociais de baixa renda? 

. E os que projetam para aqueles que controlam as maiores riquezas? 

. Será que quem projeta um hospital, um asilo, uma creche ou um orfanato pensa no bem estar emocional e espiritual do paciente/morador, ou apenas maximiza áreas como os que projetam a maioria dos edifícios habitacionais atuais?

. E os presídios? Você já viu como é a planta-baixa de um? Como deve ser projetar ambientes onde a negação de tudo em que acreditamos condiciona o "estilo de vida"?

. Como deve ser projetar uma praça ou parque e ter imposições políticas para incluir os equipamentos necessários ao lazer de perfil social da população em detrimento de outros?

. Será que um arquiteto que se dedica ao paisagismo se realiza apenas em atender a quem pode pagar e manter um projeto seu? Ou será que ele também se realiza em ajudar comunidades a incorporar porções de paisagismo em seus entornos, aumentando assim o reconhecimento de pertencença e transformação àqueles ambientes?

. Será que um arquiteto que gerencie obras se preocupa com desperdícios além do viés econômico? Será que ele busca assegurar que tudo seja construído com as melhores técnicas para o que foi especificado em projeto, garantindo a durabilidade e qualidade do mesmo? Será que ele se preocupa em sensibilizar os colaboradores com valores mais profundos para com o manuseio de materiais, recursos e também com os próprios valores individuais do trabalho de cada artífice?

. Será que um arquiteto que atua na Segurança do Trabalho se preocupa realmente com a ergonomia e conforto ambiental dos espaços? Será que ele se esforça para fazer om que os colaboradores de uma organização estejam protegidos realmente de acidentes ou só cumpre uma função legal para manter a organização dentro do simples atendimento legal?

. Será que os urbanistas projetam os deslocamentos com foco na mobilidade urbana orientada para o acesso de todos ou prioriza algum setor? Será que as escalas dos equipamentos projetados realmente são adequados à uma população média? Será que sofrem ao querer projetar bairros mais inclusivos e são limitados por imposições políticas?

. Será que um urbanista ao participar da elaboração de um plano diretor, consegue eliminar variáveis até encontrar as melhores opções de zoneamento e inclusão de equipamentos urbanos como um aterro sanitário, uma ETE, uma ETA, pontos de coleta de resíduos, dentre tantos outros? (Te peguei! Achou que era atribuição exclusiva de engenheiros ambientais ou sanitaristas, hein?) 

. Será que um arquiteto que trabalhe com a certificação de edificações sustentáveis vai além do ato de projetar e certificar para quem pode bancar um SGA e sua consultoria? Ou será que ele busca distribuir melhor seus saberes por outros que não têm acesso a um serviço formal?

Será...? Será...? Será...? 

São tantas as possibilidades, tantos os talentos e áreas de atuação, tantos profissionais com os saberes desperdiçados ou sub-utilizados nesta profissão (como em qualquer outra, não é mesmo?), que normalmente nem paramos para pensar nestas coisas: apenas deixamos a vida nos levar. Talvez todos nós, na ânsia da sobrevivência diária, esqueçamos as maravilhas que existem em nossos atos de trabalho. Talvez tenhamos endurecido corações e visões, mas precisamos lutar contra isto como cristãos e co-partícipes da criação. 

Não serei hipócrita em dizer que sempre me sinto otimista ou vivencio sempre e plenamente a fé que professo. Não sou como uma Pollyanna, mas também não sou como uma Hardy Har Har ... Não, mesmo. Acredito que uma das maiores graças que tempos em nosso tempo é a possibilidade de acesso à informação e ao aprendizado. E que talentos também incluem responsabilidades BEM sérias. 

Se você só se preocupava com os seus pecados veniais e mortais, acrescente aí a qualidade do uso de seus talentos. Busque se aprofundar na fé que professamos; eu ando bem preocupada com isto.

Me diga aí... Sua profissão contribui de qual forma para o Reino? 😉

(28.07.2016)

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Os "6Rs" do zelo espiritual pelo Circa Creationis...
(Porque a Laudato Si' diz que você tem que ir além da coleta seletiva...)




Recuse as tentações - de consumo ou não - vãs.

Reduza a quantidade daquilo que consome, evitando o desperdício. A moderação sempre foi uma virtude. E não se esqueça que pessoas não estão aqui para serem consumidas por você.

Reutilize aquilo que você sabe ser bom em você. Não prive as pessoas de boas ações gratuitas. Gaste-se por Cristo!

Redefina (prioridades, atitudes): Concentre-se no que é realmente importante... Faça, mas não espere receber em troca. O amor só cresce quando se dá e saber doar-se é uma benção.

Reinvente (as formas de se doar): presencialmente ou virtualmente, há muito o que fazer na evangelização para o Reino. Dê "outra leitura" aos seus talentos e os compartilhe.

Recicle os maus sentimentos e ações: CONFISSÃO JÁ!!!



(Em 09.06.2016)

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Uma das melhores leituras que fiz sobre a Laudato Si' sem o foco do "ambientalismo" tão comum em todas as resenhas e sim do Catolicismo... Boa leitura!


O Papa nos mostra o caminho: A maior contribuição do Papa Francisco é à D.S.I.



Por Carlos Ramalhete

Como já escrevi anteriormente, acredito firmemente que o Papa Francisco é uma enorme bênção de Deus à Sua Igreja. Quando ele foi eleito, eu não gostei. Mais tarde, lendo com devoção e atenção filial os seus escritos, percebi claramente que ele é exatamente a pessoa certa para dirigir a Barca de Pedro nestes nossos tempos tão tumultuosos.

Em termos históricos, estamos em uma virada civilizacional. Não é a primeira por que a Igreja passa, e não há de ser a última. Quando da queda de Roma, por exemplo, Deus suscitou São Gregório Magno Papa para guiar a Igreja na transição ao grandioso Medievo que surgiria. São Gregório, mais que qualquer outro seu contemporâneo, entendeu o que se ganhava e o que se perdia, e indicou meios de manter e guiar a Igreja viva e forte; ao longo dos séculos seguintes, toda a sociedade ocidental se forjou a partir de seus ensinamentos.

O momento em que vivemos não é menos dramático que o do fim de Roma. A sociedade moderna, fruto das Luzes do Século XVIII, está se esboroando. As suas experiências sociais mais características  —  Estados nacionais, pensamento ideológico, laicismo, Estado de Direito…  —  estão se transformando em caricaturas deformadas delas mesmas, fazendo com que os mecanismos sociais modernos se voltem contra a própria população.

Quis o bom Deus que justamente no entorno do período em que a sociedade moderna vivesse o seu auge, sucessivos papas, percebendo os horrores que vinham sendo perpetrados por ela e que tiveram seu apogeu nos genocídios de meados do Século XX, codificassem e expusessem aspectos da Doutrina Social da Igreja (doravante DSI).

A DSI, de uma certa forma, pode ser considerada uma resposta não-ideológica, não-moderna, ao pensamento ideológico moderno. Em vez de uma “receita de bolo”, ela apresenta princípios e valores pelos quais podemos saber o que funciona, o que está de acordo com a dignidade e com a natureza humanas. Como praticamente tudo na Revelação e nos seus corolários, foi  —  ou antes é ainda  —  uma percepção gradual: cada nova manifestação magisterial nos iluminou um ponto. 

Para pensadores atentos ao magistério imemorial, tudo o que era dito era já sabido, pois não há nada de novo na Sã Doutrina. A aplicação daquelas sabenças aos problemas de cada momento  —  o tratamento das coisas novas, das “rerum novarum” –, todavia, foi a cada passo explicitada pela Igreja para que não nos fosse necessário fazer a cada vez o trabalho de parto daquelas verdades imersas em uma Verdade maior, da qual fazem parte inseparável, tal como inseparáveis eram as partes da túnica inconsútil de Nosso Senhor.

Faltava à DSI, no entanto, uma unidade epistemológica. Tínhamos direções aonde ir  —  os princípios  —  e donde sair  —  os valores –, mas não tínhamos, ao menos não de forma explícita, a visão de conjunto que nos permitiria entender e aplicar a DSI nas décadas e séculos que se seguirão ao momento em que escrevo, aos 2016 anos da Encarnação do Verbo.

O Santo Padre São João Paulo II mandou fazer o Compêndio de Doutrina Social da Igreja; não funcionou. Os funcionários e estudiosos que o elaboraram não conseguiram livrar-se dos antolhos modernos, que os impediram de perceber que os problemas com que em breve seria necessário lidar eram muito maiores e mais graves e mais profundos que as questiúnculas da política européia com que preencheram páginas e mais páginas de túrgida prosa. O que produziram vale tanto ou mais como aplicação dos mesmos princípios e valores da DSI, perfunctoriamente apresentados, àquelas circunstâncias históricas extremamente efêmeras que como apresentação da reta Doutrina para auxiliar a construção de sociedades que ainda estão por vir.

Foi então que a Divina Providência fez sair “do fim do mundo”, de fora daquela sociedade ocidental moderna decadente, o Papa Francisco. Em sua magnífica encíclica Laudato Sí, ele nos proporcionou a visão de conjunto que faltava às definições magisteriais da DSI. E em sua exortação Evangelii Gaudium, ele nos presenteou quatro princípios de ação, corolários inspirados do corpus doutrinário da DSI, que podem nos levar adiante ricamente nas reformulações sociais por que o mundo, queiramos ou não, está a passar.

Eu já os havia encontrado quando li pela primeira vez a Evangelii Gaudium. Foi apenas agora, todavia, que tive a atenção mais perfeitamente despertada para eles, ao ler um artigo de Pe. Giovanni Scalese. O mais curioso é que o Pe. Scalese não percebeu que a maior riqueza deles é justamente o que ele considera ser neles problemático. Explico.

Como disse acima, estamos num momento histórico em que as experiências sociais modernas vêm se transformando em caricaturas deformadas delas mesmas:

- Os Estados nacionais, presos num cabo-de-guerra entre forças dissolutivas que tornam em focos de anomia ou de direitos alternativos vastos espaços em seu interior e tentativas hipermodernas de união transnacional que eliminam na prática a soberania absoluta que caracterizava esta forma de organização social, perdem visivelmente a capacidade de ação, transformação e “organização” social;

- O pensamento ideológico, que coloca o dever-ser à frente do ser, fazendo da obra política a adequação da coisa ao intelecto, sendo o acerto da ideologia o pressuposto pelo qual se mede a realidade, em aberta oposição à verdade, que é a adequação do intelecto à coisa, chegou a tal ponto de absurdidade que se pôs a subitamente a negar, revirar e perverter elementos tão básicos e essenciais da realidade quanto o masculino e o feminino, o humano e o bestial, etc.;

- O laicismo, que mesmo em suas formas mais selvagens (Khmer Vermelho, nazismo, etc.) pressupunha a existência objetiva de uma verdade maior, encarnada pelo Estado totalitário como “Igreja” verdadeira em oposição à Igreja de Cristo e a qualquer manifestação natural do fenômeno religioso, transformou-se em defesa encarniçada do relativismo mais absoluto, “temperado” pela folclorização do fenômeno religioso;

- O Estado de Direito, que colocava acima dos detentores de cargos públicos uma lei emanada de um povo do qual viria toda autoridade, transformou-se num mecanismo pelo qual esses mesmos detentores de cargos públicos, munidos de um cheque em branco, dedicam-se à construção de utopias impopulares, que no mais das vezes acabam por revelar-se distópicas.

Dentro da Igreja, esta passagem da modernidade à pós-modernidade (ou hiper-modernidade, ou modernidade tardia, como preferirem) fez-se na forma que costumo chamar de modernismo de direita e modernismo de esquerda. O pensamento ideológico moderno, com todos os seus problemas, infiltrou-se na Igreja e retirou de muitos dentre nós a capacidade de perceber a realidade tal como ela é. 

Para o modernista, seja ele de direita ou de esquerda, a realidade não interessa; o que interessa é o joguinho jogado exclusivamente entre a “elite” gnóstica moderna, na nacele de um balão que cada vez mais afasta-se da realidade dos fatos no solo. 

Interessam apenas os “issues”, os pontos-de-discordância que epitomam as diferenças ideológicas entre a direita e a esquerda da modernidade. A Sã Doutrina é reduzida por ambos os grupos, de esquerda e de direita, a pontos focais arrancados do todo; o que deveria ser a túnica inconsútil transforma-se, na melhor das hipóteses, numa constelação de pontos luminosos em meio a um intenso e negro vazio.

Este é um comportamento que se percebe facilmente nas “leituras”, se é que se as pode assim chamar, que os modernistas fazem dos documentos magisteriais. O documento não interessa; ele é lido (ou, antes, faz-se nele uma busca informática de palavras-chave!) apenas para verificar se o “issue” X ou Y foi tratado de um modo que possa ser interpretado como adequando-se ao discurso daquela facção da modernidade. Se não houver sido, ele é percebido como fazendo parte do arsenal da facção oposta. 

O resultado desse empobrecimento é o que vemos: documentos maravilhosos, como a exortação Amoris Laetitia, veem-se ignorados em prol de um debate acirrado acerca de se a nota-de-pé-de-página número 351(!) foi devidamente explícita ao condenar ou permitir algo que parece politicamente importante a uma determinada facção moderna.

Na modernidade ideológica, e portanto na hipermodernidade, a realidade que interessa é a elaboração conceitual. O sucedâneo de santidade que interessa é o pertencimento gnóstico ao grupo dos iluminados que agem corretamente, vestem-se corretamente e aderem às elaborações conceituais corretas, o que faz as vezes de doutrina e prática cristãs. A diferença entre o modernismo de esquerda e o de direita é ínfima; ambos são reduções drásticas da realidade a construtos em última instância gnósticos, a eticismos neopelagianos desprovidos de bondade.

Para nos ajudar a sair desta enrascada intra e extra-eclesial, quis a Divina Providência oferecer pelo Papa Francisco quatro princípios de ação (não de juízo!) que “orientam especificamente o desenvolvimento da convivência social” necessária para que tanto a sociedade como um todo seja pacífica, mas para que todos nós sejamos um, conforme a vontade do Pai. São princípios que ele nos dá para a DSI, mas que servem  —  e como servem!  —  para a prática pastoral (e “ovelhal”, claro) intraeclesial. 

Pudera que sua explicação mais ampla nos tenha vindo em seu documento sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual: é no anúncio do Evangelho (que se faz primeiramente pela nossa vida e, quando necessário, por palavras) que as dimensões ad intra e ad extra da eclesialidade necessariamente se devem combinar.

O primeiro dos princípios é que o tempo é superior ao espaço.

A realidade é temporal. Vivemos no tempo, e é no tempo que o próprio Deus Se introduziu pela Encarnação do Verbo. Ouvimos a cada domingo que “in illo tempore”, “naquele tempo”, agiu e ensinou Nosso Senhor. A obra redentora cristã é, antes de qualquer outra coisa, extraordinária pela entrada do Eterno no tempo, do Infinito na finitude, do Criador na criação.

Todos nós somos filhos de alguém, e muitos de nós somos pais de alguém e um dia seremos avós e bisavós. Temos uma longa árvore genealógica, que se estende em ato numa direção e em potência na outra. Do mesmo modo, a própria História que vivemos e em que estamos inseridos estende-se em duas direções: a.C., “antes de Cristo”, antes da Encarnação do Verbo, e d.C., “depois de Cristo”, depois da mesma Encarnação.

A religião cristã, destarte, é perfeita e completamente inserida na história. Ela ocorre no tempo, e no tempo ocorreu cada etapa da revelação divina. O cristão de hoje tem a mesmíssima Fé (esta, sim, eterna e atemporal) do cristão de qualquer momento nos últimos vinte séculos, e partilha com ele a mesma natureza humana. As circunstâncias históricas são outras, contudo: o Norte da África, terra de Santo Agostinho, foi perdido há séculos para a Fé; já a América do Sul, cuja existência ele ignorou até vê-la do Céu, foi ganhada.

O pensamento moderno é incapaz de perceber isto, por não conseguir ater-se ao mundo real. O que lhe importa é apenas a elaboração conceitual à qual o modernista julga ser seu dever adequar a realidade que falha em perceber claramente. O resultado disso é que para ele o espaço é o que existe; o tempo não faz sentido.

Todo modernista tem enorme dificuldade em lidar com a afirmação de Nosso Senhor de que devemos deixar o joio e o trigo crescer juntos, para que não se arranque o trigo quando se queria apenas arrancar o joio. Para o modernista, de direita ou de esquerda, o trabalho a fazer é justamente o de arrancar o que não se encaixa naquela ideia, naquela elaboração conceitual, naquela ideologia. 

Nas formas mais selvagens da modernidade, no século passado, o que era tido por “joio” foi jogado aos fornos de Auschwitz, às vastidões gélidas da Sibéria ou aos campos de morte de Pol Pot. Nas suas formas decadentes de hoje, ele é jogado fora da Igreja.

É por isso que os modernistas de esquerda gostam tanto de falar de um tal “projeto de Jesus”: tratar-se-ia do rascunho dessa sociedade nova, desse trigal desprovido de joio. O custo seria “apenas” de algumas espigas de trigo arrancadas e jogadas ao fogo junto com ele. Ensina-nos Nosso Senhor que não só não vale a pena, como que o que devemos fazer é o oposto: nosso dever é ir atrás daquela centésima ovelha, que se perdeu.

Os modernistas de direita, por sua vez, costumam ser ainda mais evidentes no seu afã de arrancar, arrancar sempre, tudo o que não se encaixe no plano. Raro é o modernista de direita que não veja na excomunhão, por alguma razão que Freud sem dúvida se divertiria muito em explicar, uma espécie de superpoder que faria com que a Igreja se tornasse magicamente em paraíso na terra se pelo menos fosse aplicada com freqüência suficiente. Ah, se o Papa arrancasse todo esse joio de ‘ladrões, injustos, adúlteros, […] como este publicano’ e desse assim espaço aos bons que fazem como eu que ‘jejuo duas vezes na semana e pago o dízimo de tudo o que possuo’!” (Lc 18,9–14).

Já o Santo Padre Francisco nos explica que nossas ações não devem visar uma perfeita adequação instantânea da realidade a uma ideia  —  o que seria impossível –, mas sim guiar adequadamente os processos pelos quais ocorre a santificação de cada um e da sociedade. Nós nos santificamos pela vida de oração, penitência e caridade e pelo recurso aos Sacramentos, na graça de Deus, com o auxílio dos Seus Santos. Não é um processo instantâneo, pelo qual a pessoa num momento era um tremendo pecador e no instante seguinte tão santo quanto São João Batista. 

A santificação do cristão é um processo, não um passe de mágica, e o mesmo ocorre com a santificação da sociedade. Cabe inclusive lembrar que muitas vezes trata-se de um processo com idas e vindas, nada linear. É sempre um processo, nem um evento nem uma transformação. Um processo que ocorre no tempo, no tempo em que o Verbo Se encarnou, no tempo que é superior ao espaço.

O segundo princípio é que a unidade prevalece sobre o conflito.

Mais uma vez, voltamos à túnica inconsútil, que é figura da unidade. Se perguntarmos ao mundo moderno o que é a Igreja, ele nos indicará uma série de conflitos, de “issues” em que a Sã Doutrina coloca-se em oposição aos delírios mundanos: aborto, matrimônio, guerra, etc. Para o moderno não cristão, o que a Igreja faz, sua razão de ser, é a proibição da camisinha e do aborto. 

O modernista intraeclesial de direita frequentemente concordará com aquele: para este, ser cristão é ser contra isto ou aquilo e a favor daquiloutro. É o conflito que lhes dá identidade, mais uma vez na substituição da túnica inconsútil por uma constelação no céu negro e frio de inverno.

O Santo Padre nos ensina que não podemos cair nesta armadilha: temos que ter em mente a integralidade da Igreja, da Sã Doutrina, da realidade (que também é uma só, dentro da mesma ordem criada por Deus; “não matarás” e “dois corpos se atraem na razão direta de suas massas e inversa do quadrado de suas distâncias” são dois aspectos de uma mesma única realidade).

A Fé cristã, afinal, lembra-nos ele, é a Fé numa unificação suprema, em que o Céu se une à terra, o Infinito ao finito, o eterno ao temporal, Deus ao homem, a carne ao espírito, a pessoa à sociedade. A Fé não espalha, ajunta. Ele nos aponta duas maneiras errôneas e uma maneira correta de lidar com o aparente conflito:

A primeira maneira errônea é ignorá-lo; lavar as mãos. Foi a escolha de Pilatos (Mt 27,24), que no conflito (verdadeiro!) entre o Cristo e os judeus retirou-se, fazendo por sua inação com que ocorresse a maior injustiça possível. Ao ignorar o conflito, ele não pôde retirar nada, construir nada, unir nada. De sua omissão veio a morte. O conflito é real.

A segunda maneira errônea é a de tomar partido de modo absoluto. Isto faz, aponta-nos Sua Santidade, com que percamos os horizontes. É novamente a substituição da túnica pela constelação, a redução da Verdade una (que é o Cristo!) a uma série de contenciosos acidentais.

Notemos que ambas as formas errôneas acima descritas são encontradiças na modernidade; ao reduzir a Verdade a uma pequena série de contenciosos, a presença de outros elementos  —  contenciosos que estão na listinha de outros, mas não na nossa  —  é simplesmente ignorada. Assim, para o modernista de direita ou de esquerda, quando o ponto contencioso em questão não pertence ao seu rol, ele é ignorado; quando pertence, perde-se o horizonte em função do calor com que se o propugna.

Finalmente, aponta-nos nosso bom Papa a maneira correta: “aceitar suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no elo de ligação de um novo processo. ‘Felizes os pacificadores’ (Mt5,9)”.

O que significa isto? Significa que é a unidade, não o conflito, o nosso norte. Em outras palavras, não podemos nem fazer do conflito nossa razão de ser nem, por outro lado, fingir que ele não existe; devemos, sim, buscar a unidade a partir do conflito. Não há, nem poderia haver na natureza criada, mal absoluto. 

O conflito é sempre entre lados que buscam algo que percebem, correta ou incorretamente, como um bem. Até mesmo no caso mais drástico que se possa imaginar, o conflito de que fugiu Pôncio Pilatos, os judeus achavam que estavam combatendo a blasfêmia. Nenhuma blasfêmia havia sido feita, mas eles não o entendiam.

“Resolver” o conflito significa justamente entender o que é buscado por ambos os lados, perceber o bem que cada um deles visa, e a partir daí procurar uma paz que não seja nem “negociada”, nem “sincretismo”, nem “absorção de um pelo outro”. Não se trata, como a mentalidade moderna poderia distorcidamente pintar, de uma síntese hegeliana em que tese e antítese se fazem síntese, para daí recomeçar todo o processo. Não; o que propõe o Papa é a busca da unidade do Espírito, não da paz negociada, em que cada lado cede um pouco e ambos ganham e perdem ao mesmo tempo. 

É por isso que ele nos lembra que a paz que buscamos deve ser buscada primeiro dentro de nós mesmos, no reconhecimento de nossos conflitos interiores e na busca da reconstrução de nosso coração em Deus. Buscamos o homem conatural de Deus em ambos os lados, ao invés de negar liminarmente a humanidade do lado oposto ou a relevância (logo realidade) do conflito.

Daí, deste encontro com o que é de Deus em cada homem, em cada cultura, em cada pensamento, vem a catolicidade da Igreja. Lavar as mãos do conflito ou, ao contrário, mergulhar nele são maneiras de negar o que é humano e o que é divino, a Verdade e a salvação. São modos de fechar-se em uma seita, o que é o oposto do que nos manda fazer Nosso Senhor.

O terceiro princípio reza que a realidade é mais importante que a ideia.

Trata-se do tiro final na nuca da modernidade, diria eu.

Já vimos fartamente acima como a modernidade é a inversão da apreensão verdadeira: é a colocação da ideia como superior à realidade. Posso ir mais longe, e afirmar com o Papa que “[a] ideia  —  as elaborações conceituais  —  está ao serviço da captação, compreensão e condução da realidade. […] Caso contrário, manipula-se a verdade, do mesmo modo que se substitui a ginástica pela cosmética”.

O uso da ideia como pedra de toque da realidade, mesmo quando esta ideia se pretende doutrina cristã, é a substituição da ginástica pela cosmética; é apertar-se numa cinta e dizer-se magro, levantar halteres de isopor e dizer-se forte.

A realidade deve ser percebida verdadeiramente; precisamos adequar o nosso intelecto à realidade, não o contrário. Quando a nossa percepção da realidade é verdadeira, podemos lidar com ela corretamente. É por isso que o nosso processo de conversão só pode ocorrer pela percepção de nossos pecados: eles são reais. São gigantescos vazios no nosso ser, que percebemos com os olhos da Fé e entendemos com o prisma da razão que a Fé ilumina. 

Se, ao invés disto, tivermos uma percepção ideológica e falseada da realidade, não serão os nossos pecados, sim os supostos pecados alheios que perceberemos. Digo ainda “supostos” porque é extremamente provável que o que apontemos na verdade não seja sequer pecado real, apenas inadequação à ideologia (de esquerda ou de direita) à qual estamos tentando reduzir o mundo. 

O modernista de direita vai ver blasfêmia e irreverência por toda parte, e o de esquerda ganância e violência. Ambos estão muito mais errados que certos, na medida em que o que eles veem não passa de reflexo do que eles deixam de perceber neles mesmos. O modernista de esquerda é sumamente violento e ganancioso, e o de direita é blasfemamente pelagiano e irreverentemente gnóstico; por isso eles identificam nos demais o que falta a eles mesmos, sem conseguirem, todavia, identificar neles mesmos o que pensam estar apontando.

O Santo Padre apontou com clareza meridiana, finalmente, a perigosa tentação de fazer da nossa Fé uma ideologia: Se o cristão for um restauracionista, um legalista, se ele quiser tudo claro e seguro, então ele não encontrará nada. A Tradição e a memória do passado devem nos ajudar a ter a coragem de abrir a Deus novas áreas. Os que sempre procuram soluções disciplinárias, os que anseiam por uma ‘segurança’ doutrinal exagerada, os que teimosamente tentam recobrar um passado que já não existe — estes têm uma visão estática e autocentrada das coisas. Desta forma, a Fé se torna uma ideologia entre as demais ideologias. O contexto aponta para o modernismo de direita, mas o modernismo de esquerda cai exatamente no mesmo erro.

Não podemos olvidar que a nossa Fé é na Encarnação do Verbo, não na verborragia da carne. A realidade  —  a que sua, caminha, come e chora de dor e de saudades do Paraíso  —  é mais importante, muitíssimo mais importante, que a ideia.

Finalmente, o quarto e derradeiro princípio de ação que nos propõe Sua Santidade é que o todo é superior à parte.

Mais uma vez, na tradição homilética jesuíta, o Santo Padre nos dá um trio de soluções, das quais duas são falsas  —  as armadilhas que o Inimigo coloca, uma de cada lado do reto caminho  —  e uma só é verdadeira.

A primeira falsa solução ao conflito entre o global e o local, entre o coletivo ou social e o individual, é mais uma vez o lavar-se as mãos e fugir da refrega. É o que fazem, diz-nos ele, os que assistem como que de fora todas as culturas ou espiritualidades, sem viver nenhuma, como perpétuos passageiros de um trenzinho de parque de diversões, a tudo percebendo com espetáculo.

A segunda, e oposta àquela primeira, é o mergulho exagerado no específico, a fuga do diferente. É o erro de quem se recusa a perceber o valor de qualquer coisa que não lhe seja extremamente familiar.

Ambas, mais uma vez, são semelhantes, mais semelhantes que díspares. Ambas perdem de vista aquela unidade e unicidade da realidade criada, sobre a qual já discorri acima, percebendo erroneamente seus componentes como ou bem um mero espetáculo que se assiste e civilizadamente se aplaude ou bem um forte, um bunker, um nicho do qual nos defendemos de uma realidade apavorante do mundo lá fora.

A realidade do mundo é outra: vivemos numa sociedade familiar, que vive na sociedade do bairro, que vive numa sociedade maior, e noutra, e noutra, até chegarmos à Igreja e a toda a humanidade (que, não esqueçamos, tem seu reto lugar dentro da Igreja; Deus não chama ninguém a ficar de fora dela!). Tudo é parte de uma mesma criação, de uma mesma ordem, de uma única realidade de que  —  como já escrevi mais acima  —  “não matarás” e “dois corpos se atraem na razão direta de suas massas e inversa do quadrado de suas distâncias” são dois aspectos.

Assim, a forma correta de lidar com este conflito é lembrar que o indivíduo não pode se perder numa identidade grupal, nem a sociedade pode se fragmentar em mera associação contratual de indivíduos. Estas, aliás, são as duas vertentes mais comuns da modernidade que ora acaba, dando-nos todavia ainda tanto trabalho.

Do mesmo modo, dentro da Igreja, um aspecto definido da Sã Doutrina não pode ser usado como porrete para bater nos demais: mais uma vez, é a túnica inconsútil, não a constelação. A Igreja é católica, e sua catolicidade é infinitamente maior que a soma das espiritualidades e das culturas que a integram. 

Quanto maior a dimensão da unidade (e a maior dimensão possível é a da Igreja, que é Corpo Místico de Cristo), mais superior à soma das partes ela é. Na sociedade civil, a sociedade como um todo também tem um valor maior que o das partes que a compõem. Isto não significa que ela deva sufocar as instâncias inferiores, como nos sistemas modernos totalitários. Ao contrário; este valor maior mostra a que vêm as instâncias inferiores. 

Algumas famílias reunidas criam uma aldeia, que é muito mais que a mera justaposição de famílias e ao mesmo tempo fortalece a todas e a cada uma delas; um casal que se une e se abre à vida cria uma família, que é muito mais que a convivência de indivíduos, mas que é ao mesmo tempo o lugar onde eles podem ser mais plenamente a pessoa que Deus os criou para ser.

Mas para que haja família, para que haja aldeia, é necessário que haja os indivíduos, que haja a família. Não é possível casar todos os rapazes com todas as moças: é sempre um indivíduo de cada sexo que se casa com o outro, e só com aquele outro a quem ele deseja unir-se.

Mas a união, seja ela dos casaizinhos de noivos, das famílias, das cidades, dos povos, etc., é um bem. Ela gera algo maior e mais valioso que a mera soma das partes, desde que ela se opere de maneira orgânica, de acordo com os princípios enunciados pela DSI. É na união que cresce a catolicidade; é nela que encontramos como aceder às riquezas verdadeiras de nossos irmãos, sem nem fazer delas mera curiosidade antropológica nem bunker de onde atirar no diferente. O que é diverso nos enriquece, desde que haja esta união maior, que devemos sempre buscar pelo fato de o todo ser superior à parte.

Com escrevi no começo deste artigo, Pe. Scalese não entendeu um ponto crucial para a reta compreensão do pensamento do Papa Francisco: o Santo Padre não é moderno. Ponto. Mais ainda: para ele, a modernidade é lastimável, abaixo da crítica e indigna de atenção. 

É por isso que ele está basicamente se lixando para se os modernistas de direita ou de esquerda (que basicamente habitam apenas Europa e América do Norte, com filiais nas classes médias urbanas moderninhas do Terceiro Mundo) vão perceber o que ele diz como se encaixando em algum de seus “issues” de estimação. Não é para eles que ele fala, mas para as velhinhas do Apostolado da Oração da Bolívia e para os seminaristas congoleses.

As críticas do Pe. Scalese podem ser, todas eles, resumidas numa só: “isto se presta a uma leitura errônea quando se usam pressupostos modernos”. Sejam os pressupostos sistemas de pensamento modernos (dialética hegeliana para distorcer a visão do Papa de solução de conflitos, por exemplo) ou simples enganos modernistas (ele afirma que o Santo Padre “combate a Doutrina”  —  “Francis’ continual arguments against doctrine” –, sem perceber que o que o Santo Padre justamente combate é a ideologização da Doutrina.

Vale a pena, como sempre, sentar e prestar atenção no que nos ensina o Vigário de Cristo. Que seu pontificado seja tão longo quanto o de São Pedro!

Fonte: https://medium.com/@carlosramalhete/o-papa-nos-mostra-o-caminho-e0aee51c907f#.oefhyhrfz


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CF 2011: Quarta-feira de Cinzas...


Inicia-se hoje a Campanha da Fraternidade que oficialmente perdurará pelo período da Quaresma. Não seria interessante que esta perdurasse o ano inteiro e não terminasse na coleta do Domingo de Ramos? Pode-se trabalhar o tema, por exemplo:

- em festividades de padroeiros e padroeiras, através da montagem de barraquinhas feitas de madeira reutilizada ou madeira de origem plantada ('madeira plástica' seria interessante, mas ainda é muito cara...), com a utilização de decoração feita com peças de artesanato em material reciclado, etc.; 

- elaboração de tapetes em Corpus Christi com a utilização de materiais recicláveis ou reciclados (Utilizando o bom gosto, sempre! Lembre-se que muitos são realizados nas naves de igrejas e se deve ter bom senso com o que é permitido a ser realizado. Nada de "reavivamentos da fé" que não caibam dentro da liturgia diária); 

- programação de palestras para a comunidade paroquial com profissionais relacionados à área ambiental (Quem não deseja saber sobre as condições físicas de seus bairros, sobre seu saneamento básico e drenagem pluvial, sobre como a legislação urbana auxilia a termos melhores condições de vida?); 

- realização de ações efetivas para melhorar o desempenho ambiental dos conjuntos arquitetônicos de cada paróquia - envolvendo pastorais e movimentos - e das residências dos paroquianos, através da substituição de materiais e equipamentos que visem uma melhor eficiência energética; 

- realização de mutirões para reacender o desejo de se doar algo a mais que uma determinada quantia, para auxílio aos assistidos por serviços sociais ou pelo movimento vicentino (quando este existente);

- etc. 


Não falta imaginação, falta ação...


Alguns católicos não aprovam a campanha da fraternidade por esta muitas vezes abordar temas que são tratados por um viés político que tende ao esquerdismo ou por entenderem que os temas não deveriam ser abordados no período da Quaresma, pois este deveria ser estritamente espiritual. Como não consigo dissociar a realidade corpórea da espiritual, discordo destes, pois cada tema em si trata de como nos posicionamos como Igreja perante o mundo transformado por nós, possivelmente cada vez mais distante do sentido primevo da Criação.

Entretanto, todos estamos juntos - geograficamente e espiritualmente irmanados - e ainda que desejemos morrer buscando a santidade, é aqui que perduramos anunciando o Evangelho e diariamente nos convertendo (Qual o verdadeiro católico que não deseja morrer e ficar junto com Deus? Nem pais, nem esposos, nem filhos, nem amigos são mais importantes que Deus... Será isso mesmo verdade?). Como buscar o Criador sem reconhecer na Criação condições para a sua sobrevivência? Não se iludam, fazer jejum ou promover abstinências somente são mortificações para quem tem vida abundante, a qual muitos ainda, limitadamente, confundem com riquezas materiais. E só a imensa Misericórdia e Graça de Deus para tocar um coração faminto ou sem condições de sobrevivência para as realidades anunciadas pelo Evangelho. 

Não serão apenas as nossas palavras que o trarão para perto e o ajudarão a trilhar o tortuoso caminho da fé, mas também as nossas obras diante deste e da Criação, quando realizadas através de uma caridade que se impõe além dos conceitos materiais relacionados à esmola (argh!), mas também em nosso agir como elementos de uma cidadania que deve reconhecer o direito do outro viver dignamente. Não nos deve importar se uns serão ricos, outros pobres... importa que não produzamos miseráveis por uma conduta pseudocristã nesta realidade temporal em que agora vivemos.

Sendo assim, o tema é muitíssimo pertinente, ainda que eu discorde do uso do termo 'Aquecimento Global', por este não ser um consenso científico e prefira utilizar o termo 'Mudanças Climáticas' por este se associar a zonas geográficas. Entretanto, algumas destas zonas estão realmente se aquecendo em detrimento de outras e acredito que o homem não é o responsável por sua ocorrência, mas o é pela sua aceleração e contínua degradação da qualidade ambiental associada aos fenômenos meteorológicos, climatológicos e ecológicos advindos do mau uso da tecnologia. Como os papas João Paulo II e Bento XVI já afirmaram tantas vezes, é uma questão moral... 

E qual é a sua? A de sanguessuga ou a de zelador?

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Sobre valores...


Lendo Amor Líquido de Zigmunt Bauman, percebi que há diversas passagens que se aproximam muitíssimo do conceito de ecologia humana, vide o capítulo "Sobre a dificuldade de amar o próximo". Neste, uma frase 'saltou aos olhos' num determinado momento e tem tudo a ver com os assuntos que trata este blog:


"O planeta inteiro não pode sofrer tormento 
maior do que uma única alma"


Para refletir...

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Amar o mundo apaixonadamente...


Homilia do Fundador: 'Amar o mundo apaixonadamente' ('Questões Atuais do Cristianismo', São Paulo, Quadrante, 3ª ed., 1986; n. 113). No texto São Josemaria faz um resumo do espírito que difundiu a partir de 1928. Homilia pronunciada no campus da Universidade de Navarra em 8 de outubro de 1967.


Acabam de escutar a leitura solene dos dois textos da Sagrada Escritura correspondentes à Missa do XXI domingo depois de Pentecostes. Tendo ouvido a Palavra de Deus, ficam já situados no âmbito em que querem mover-se as palavras que agora vou dizer: palavras de sacerdote, pronunciadas perante uma grande família de filhos de Deus em sua Igreja Santa. Palavras, portanto, que desejam ser sobrenaturais, pregoeiras da grandeza de Deus e de suas misericórdias para com os homens: palavras que a todos preparam para a impressionante Eucaristia, que hoje celebramos no campus da Universidade de Navarra. 

Considerem por alguns instantes o fato que acabo de mencionar. Celebramos a Sagrada Eucaristia, o sacrifício sacramental do Corpo e Sangue do Senhor, esse mistério de fé que reúne em si todos os mistérios do Cristianismo. Celebramos, portanto, a ação mais sagrada e transcendente que os homens, pela graça de Deus, podem realizar nesta vida. Comungar no Corpo e no Sangue do Senhor vem a ser, em certo sentido, como que desligar-nos de nossos liames de terra e de tempo, para estarmos já com Deus no Céu, onde o próprio Cristo nos enxugará as lágrimas dos olhos e onde não haverá morte, nem pranto, nem gritos de fadiga, porque o mundo velho já terá terminado (Cfr. Apocalipse, I, 4).

Esta verdade tão consoladora e profunda, este significado escatológico da Eucaristia, como os teólogos costumam denominá-lo, poderia, no entanto, ser mal entendido: e assim aconteceu sempre que se quis apresentar a existência cristã como algo unicamente espiritual - isto é, espiritualista -, próprio de pessoas puras, extraordinárias, que não se misturam com as coisas desprezíveis deste mundo ou que, quando muito, as toleram como algo necessariamente justaposto ao espírito, enquanto aqui vivemos.

Quando se vêem as coisas deste modo, o templo se converte, por antonomásia no lugar da vida cristã; e, nessa altura, ser cristão é ir ao templo, participar em cerimônias sagradas, incrustar-se numa sociologia eclesiástica, numa espécie de mundo segregado, que se apresenta a si mesmo como ante-câmara do céu, enquanto o mundo comum vai percorrendo o seu caminho. Assim, a doutrina do Cristianismo, a vida da graça, andariam como que roçando o buliçoso avançar da história humana, mas sem se encontrarem com ele.

Nesta manhã de outubro, enquanto nos preparamos para adentrarmos no memorial da Páscoa do Senhor, respondemos simplesmente "Não!" a essa visão deformada do Cristianismo. Reparem, por um momento, em como está em emoldurada a nossa Eucaristia, a nossa Ação de Graças: encontramo-nos num templo singular; poderia dizer-se que a nave é o campus universitário; o retábulo, a Biblioteca da Universidade; além, as máquinas que levantam novos edifícios; e, por cima, o céu de Navarra... Será que esta enumeração não está confirmando, de uma forma plástica e inesquecível, que é a vida corrente o verdadeiro lugar da existência cristã? Meus filhos: aí onde estão nossos irmãos os homens, aí onde estão as nossas aspirações, nosso trabalho, nossos amores - aí está o lugar do nosso encontro cotidiano com Cristo. Em meio das coisas mais materiais da terra é que nós devemos santificar-nos, servindo a Deus e a todos os homens.

Tenho-o ensinado constantemente com palavras da Escritura Santa: o mundo não é ruim, porque saiu das mãos de Deus, porque é criatura d'Ele, porque Javé olhou para ele e viu que era bom (Cfr. Gen I, 7 e ss.). Nós, os homens, é que o fazemos ruim e feio, com nossos pecados e nossas infidelidades. Não duvidem, meus filhos; qualquer modo de evasão das honestas realidades diárias é para os homens e mulheres do mundo coisa oposta à vontade de Deus. 

Pelo contrário, devem compreende agora - com uma nova clareza - que Deus os chama a servi-Lo em e a partir das tarefas civis, materiais, seculares da vida humana. Deus nos espera cada dia: no laboratório, na sala de operações de um hospital, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no seio do lar e em todo o imenso panorama do trabalho. Não esqueçamos nunca: há algo de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir.

Eu costumava dizer àqueles universitários e àqueles operários que me procuravam lá pela década de 30, que tinham de saber materializar a vida espiritual. Queria afastá-los, assim, da tentação, tão freqüente nessa época e agora, de levar uma vida dupla: a vida interior, a vida de relação com Deus, por um lado; e por outro, diferente e separada, a vida familiar, profissional e social, cheia de pequenas realidades terrenas.

Não, meus filhos! Não pode haver uma vida dupla, não podemos ser como esquizofrênicos, se queremos ser cristãos. Há uma única vida, feita de carne e espírito, e essa é que tem de ser - na alma e no corpo - santa e plena de Deus, desse Deus invisível, que nós encontraremos nas coisas mais visíveis e materiais. 

Não há outro caminho, meus filhos: ou sabemos encontrar o Senhor em nossa vida de todos os dias, ou não O encontraremos nunca. Por isso, posso afirmar que nossa época precisa devolver à matéria e às situações aparentemente mais vulgares seu nobre e original sentido: pondo-as ao serviço do Reino de Deus, espiritualizando-as, fazendo delas meio e ocasião para o nosso encontro contínuo com Jesus Cristo.

O autêntico sentido cristão que professa a ressurreição de toda a carne - sempre combateu, como é lógico, a desencarnação , sem medo de ser tachado de materialista. É lícito, portanto, falar de um materialismo cristão, que se opõe audazmente aos materialismos cerrados ao espírito.

O que são os sacramentos - vestígios da Encarnação do Verbo, como afirmaram os antigos - senão a mais clara manifestação deste caminho escolhido por Deus para nos santificar e levar ao Céu? Não vêem que cada sacramento é o amor de Deus, com toda a sua força criadora e redentora, dando-se a nós através de meios materiais? O que é a Eucaristia - já iminente - senão o Corpo e Sangue adoráveis do nosso Redentor, que se oferece a nós através da humilde matéria deste mundo - vinho e pão -, através dos elementos da natureza, cultivados pelo homem, como o quis recordar o último Concílio Ecumênico? (Cfr. Gaudium et Spes, 38).

Assim se compreende, meus filhos, que o Apóstolo chegasse a escrever: "Todas as coisas são vossas, vós sois de Cristo e Cristo é de Deus" (1Cor.III, 22-23). Trata-se de um movimento ascendente que o Espírito Santo, difundido em nossos corações, quer provocar no mundo; da terra até à glória do Senhor. E para ficar bem claro que - nesse movimento - se incluía também o que parece mais prosaico, São Paulo escreveu ainda: "Quer comais, quer bebais, fazei tudo para a glória de Deus" (1Cor.X, 31).

Esta doutrina da Sagrada Escritura, que se encontra - como sabem - no próprio cerne do espírito do Opus Dei, deve levar-nos a realizar o trabalho com perfeição, a amar a Deus e aos homens pondo amor nas pequenas coisas da jornada habitual, descobrindo esse algo divino que se encerra nos detalhes. Que bem ficam aqui aqueles versos do poeta de Castela!: "Despacito, y buena letra: el hacer las cosas bien importa más que el hacerlas" ("Devagarinho, e boa letra; que fazer as coisas bem, importa mais que fazê-las". A. Machado, Poesias Completas, CLXI. - Proverbios y cantares, XXIV. Espasa Calpe, Madrid, 1940.).

Eu lhes asseguro, meus filhos, que quando um cristão desempenha com amor a mais intranscendente das ações diárias, está desempenhando algo donde transborda a transcendência de Deus. Por isso tenho repetido, com insistente martelar, que a vocação cristã consiste em transformar em poesia heróica a prosa de cada dia. Na linha do horizonte, meus filhos, parecem unir-se o céu e a terra. Mas não: onde de verdade se juntam é no coração, quando se vive santamente a vida diária...

Viver santamente a vida diária, como acabo de dizer. E com estas palavras me refiro a todo o programa dos afazeres cristãos. Portanto, deixem-se de sonhos, de falsos idealismos, de fantasias, disso que costumo chamar de mística do oxalá: oxalá não me tivesse casado, oxalá não tivesse esta profissão, oxalá tivesse mais saúde, oxalá fosse jovem, oxalá fosse velho...; e atenham-se, pelo contrário, sobriamente, à realidade mais material e imediata, que é onde o Senhor está: olhai minhas mãos e meus pés - disse Jesus ressuscitado -, sou eu mesmo. "Apalpai e vede que um espírito não tem carne e ossos, como vedes que eu tenho" (Luc XXIV, 39).

São muitos os aspectos do ambiente secular que se iluminam a partir destas verdades. Pensem, por exemplo, na atuação que têm como cidadãos na vida civil. Um homem ciente de que o mundo - e não só o templo - é o lugar do seu encontro com Cristo, ama este mundo, procura adquirir um bom preparo intelectual e profissional, vai formando - com plena liberdade - seus próprios critérios sobre os problemas do meio em que se desenvolve; e, por conseqüência, toma suas próprias decisões, as quais, por serem decisões de um cristão, procedem além disso de uma reflexão pessoal, que tenta humildemente captar a vontade de Deus nesses detalhes pequenos e grandes da vida.

Mas jamais esse cristão se lembra de pensar ou dizer que desce do templo ao mundo para representar a Igreja, e que suas soluções são as soluções católicas para aqueles problemas. Isso não pode ser, meus filhos! Isso seria clericalismo, catolicismo oficial, ou como queiram chamá-lo. Em qualquer caso, é violentar a natureza das coisas. Há que difundir por toda a parte uma verdadeira mentalidade laical, que deve levar a três conclusões:

— temos que ser suficientemente honrados, para arcar com a nossa própria responsabilidade pessoal;

— temos que ser suficientemente cristãos, para respeitar os irmãos na fé, que propõem - em matérias de livre opinião - soluções diversas da que cada um sustenta;

— e temos que ser suficientemente católicos, para não nos servirmos de nossa Mãe, a Igreja, misturando-a em partidarismos humanos.

Já se vê claramente que, neste terreno como em todos, não poderíamos realizar esse programa de viver santamente a vida diária, se não gozássemos de toda a liberdade que nos reconhecem simultaneamente, a Igreja e a nossa dignidade de homens e mulheres criados à imagem de Deus. Contudo, não esqueçam, meus filhos, que falo sempre de uma liberdade responsável.

Interpretem, portanto, minhas palavras, como elas são realmente: um chamado para que exerçam - diariamente!, não apenas em situações de emergência - os direitos que têm; e para que cumpram nobremente as obrigações que têm como cidadãos - na vida pública, na vida econômica, na vida universitária, na vida profissional - assumindo com valentia todas as conseqüências das suas livres decisões, e arcando com o peso da correspondente independência pessoal. E essa cristã mentalidade laical permitirá fugir de toda e qualquer intolerância, de todo fanatismo; vou dizê-lo de um modo positivo: fará que todos convivam em paz com todos os concidadãos, e fomentará também a convivência nas diversas ordens da vida social.

Sei que não tenho necessidade de recordar o que, ao longo de tantos anos, venho repetindo. Esta doutrina de liberdade de cidadãos, de convivência e de compreensão, constitui parte importante da mensagem que o Opus Dei difunde. Será que ainda tenho de voltar a afirmar que os homens e mulheres que querem servir a Jesus Cristo na Obra de Deus são simplesmente cidadãos iguais aos outros, que se esforçam por viver com séria responsabilidade - até as últimas conclusões - sua vocação cristã?

Nada distingue meus filhos de seus concidadãos. Em contrapartida, além da fé, nada têm de comum com os membros das congregações religiosas. Amo os religiosos, e venero e admito suas clausuras, seus apostolados, seu afastamento do mundo - seu contemptus mundi -, que são outros sinais de santidade na igreja. Mas o Senhor não me deu vocação religiosa, e desejá-la para mim seria uma desordem. Nenhuma autoridade na terra poderá me obrigar a ser religioso, assim como nenhuma autoridade pode forçar-me a contrair matrimônio. Sou sacerdote secular: sacerdote de Jesus Cristo, que ama o mundo apaixonadamente.

Os que seguiram a Jesus Cristo comigo, pobre pecador, são: uma pequena percentagem de sacerdotes, que anteriormente exerciam uma profissão ou um ofício laical; um grande número de sacerdotes seculares de muitas dioceses do mundo - que assim confirmaram sua obediência aos respectivos Bispos e seu amor à diocese e a eficácia de seu trabalho diocesano -, sempre com os braços abertos em cruz para todas as almas lhes caberem no coração, e que estão como eu no meio da rua, no mundo, e o amam; e a grande multidão formada por homens e por mulheres - de diversas nações, de diversas línguas, de diversas raças - que vivem de seu trabalho profissional, casados a maior parte deles, solteiros muitos outros, e que, ao lado de seus concidadãos, tomam parte na grave tarefa de tornar mais humana e mais justa a sociedade temporal: na nobre lide dos afãs diários, com responsabilidade pessoal - repito -, experimentando com os outros homens, lado a lado, êxitos e malogros, tratando de cumprir seus deveres e de exercer seus direitos sociais e cívicos. E tudo com naturalidade, como qualquer cristão consciente, sem mentalidade de gente seleta, fundidos na massa de seus colegas, enquanto procuram descobrir os fulgores divinos que reverberam nas realidades mais vulgares.

Também as obras promovidas pelo Opus Dei, como associação, têm essas características eminentemente seculares: não são obras eclesiásticas. Não gozam de nenhuma representação oficial da Sagrada Hierarquia da Igreja. São obras de promoção humana, cultural, social, realizadas por cidadãos, que procuram iluminá-las com as luzes do Evangelho e caldeá-las com o amor de Cristo. Um dado que pode exprimir isto com mais clareza: O Opus Dei, por exemplo, não tem nem terá jamais como missão dirigir Seminários diocesanos, onde os Bispos, instituídos pelo Espírito Santo (At. XX, 28), preparam seus futuros sacerdotes.

Em contrapartida, o Opus Dei fomenta centros de formação operária, de habilitação agrícola, de educação primária, secundária e universitária, e tantas e tão variadas atividades mais, no mundo inteiro, porque seus anseios apostólicos - como escrevi faz muitos anos - são um mar sem fundo. 

Mas, para que me hei de alongar nesta matéria, se a presença dos que me escutam é de per si mais eloqüente do que um longo discurso? Os Amigos da Universidade de Navarra que me escutam, são parte de um povo que sabe estar comprometido no progresso da sociedade a que pertence. Seu alento cordial, sua oração, seu sacrifício e suas contribuições não se inserem nos quadros de um confessionalismo católico: prestando a sua colaboração, eles são claro testemunho de uma reta consciência de cidadãos, preocupada com o bem-comum temporal; testemunham que uma Universidade pode nascer das energias do povo e ser sustentada pelo povo.

Quero aproveitar a ocasião para agradecer uma vez mais a colaboração prestada à nossa universidade por esta minha nobilíssima cidade de Pamplona, a grande e forte região Navarra; e pelos amigos procedentes de toda a geografia espanhola e - digo-o com especial emoção - pelos não espanhóis, e ainda pelos não católicos e os não cristãos, que compreenderam, mostrando-o com fatos, aliás, a intenção e o espírito deste empreendimento.

A todos se deve que a Universidade seja um foco, cada vez mais vivo, de liberdade cívica, de preparação intelectual, de emulação profissional, e um estimulo para o ensino universitário. O sacrifício generoso de todos está na base do labor universal que visa o incremento das ciências humanas, a promoção social, a pedagogia da fé. O que acabo de enunciar foi visto com clareza pelo povo navarro, que reconhece também em sua Universidade um fator de promoção econômica da região, e especialmente de promoção social, havendo possibilitado a tantos de seus filhos um acesso às profissões intelectuais que - de outro modo - seria árduo e, em certos casos, impossível conseguir. O discernimento do papel que a Universidade haveria de desempenhar em sua vida, decerto motivou o apoio a ela dispensado por Navarra desde o início: apoio que, sem dúvida, terá de ser de dia para dia mais amplo e entusiasta.

Continuo mantendo a esperança - porque corresponde a um critério justo e à realidade vigente em muitos países - de que um dia o Estado Espanhol contribua, por sua parte, para aliviar os ônus de uma tarefa que não tem em vista proveito privado algum, pois - muito pelo contrário -, por estar totalmente votada ao serviço da sociedade, procura trabalhar com eficácia em prol da prosperidade presente e futura da nação.

E agora, filhos e filhas, permitam que me detenha em outro aspecto - particularmente entranhável - da vida ordinária. Refiro-me ao amor humano, ao amor limpo entre um homem e uma mulher, ao noivado, ao matrimônio. Devo dizer uma vez mais que esse santo amor humano não é algo permitido, tolerado, ao lado das verdadeiras atividades do espírito, como poderiam insinuar os falsos espiritualismos a que antes aludia. Faz quarenta anos que venho pregando, de palavra e por escrito, exatamente o contrário; e já o vão entendendo os que não o compreendiam.

O amor que conduz ao matrimônio e à família pode ser também um caminho divino, vocacional, maravilhoso, por onde corra, como um rio em seu leito, uma completa dedicação ao nosso Deus. Já o lembrei: realizem as coisas com perfeição, ponham amor nas pequenas atividades da jornada. Descubram - insisto - esse algo divino que nos detalhes se encerra: toda esta doutrina encontra lugar especial no espaço vital em que se enquadra o amor humano.

Já o sabem os professores, os alunos e todos os que dedicam seu trabalho à Universidade de Navarra: eu encomendei os amores de todos a Santa Maria, Mãe do Amor Formoso. E ai está a ermida que construímos com devoção, no campus universitário, para receber de todos as orações e a oblação desse maravilhoso e limpo amor, que Ela abençoa. "Não sabeis que vosso corpo é templo do Espírito Santo, recebido de Deus e que não vos pertenceis?" (1Cor VI, 19) Quantas vezes responderão, diante da imagem da Virgem Maria, da mãe do Amor Formoso, com uma afirmação cheia de júbilo à pergunta do Apóstolo: "Sim, nós o sabemos e queremos vivê-lo com tua ajuda poderosa, ó Virgem Mãe de Deus!"

A oração contemplativa surgirá em todos sempre que meditarem nesta realidade impressionante: algo tão material como meu corpo foi escolhido pelo Espírito Santo para estabelecer sua morada..., não pertenço mais a mim..., meu corpo e minha alma - todo o meu ser - são de Deus... E essa oração será rica em resultados práticos, derivados da grande conseqüência que o próprio Apóstolo propõe: "Glorificai a Deus em vosso corpo" (1 Cor. VI, 20).

Por outro lado, como não podem deixar de reconhecer, só entre os que compreendem e avaliam em toda a sua profundidade o que acabamos de considerar acerca do amor humano, pode surgir essa outra compreensão inefável de que falou Jesus (Cfr. Mat. XIX, 11), que é puro dom de Deus e que impele a entregar o corpo e a alma ao Senhor, a oferecer-Lhe o coração indiviso, sem a mediação do amor terreno.

Tenho que terminar, meus filhos. Disse no começo que minhas palavras pretendiam anunciar alguma coisa da grandeza e da misericórdia de Deus. Penso tê-lo feito, falando de viver santamente a vida ordinária: porque uma vida santa em meio da realidade secular - sem ruído, com simplicidade, com veracidade -, não será, porventura a manifestação mais comovente das magnalia Dei (Eclesi. XVIII, 4), dessas portentosas misericórdias que Deus sempre exerceu, e não deixa de exercer, para salvar o mundo?

Agora peço que se unam com o salmista à minha oração e ao meu louvor: "Magnificate Dominum mecum, et extollamus nomen eius simul" (Salmo XXXIII, 4); "Engrandecei o Senhor comigo, e enalteçamos seu nome todos juntos". Quer dizer, meus filhos: vivamos de fé. Tomemos o escudo da fé, o elmo da salvação e a espada do espírito, que é a Palavra de Deus. Assim nos anima o Apóstolo São Paulo na Epístola aos de Éfeso (Ef VI, 11 e ss.), que faz um instante se proclamava liturgicamente.

Fé, virtude que nós, os cristãos, tanto necessitamos, de modo especial neste ano da Fé promulgado por nosso amadíssimo Santo Padre o Papa Paulo VI: porque, sem a fé, falta o próprio fundamento para a santificação da vida ordinária. Fé viva neste momento, porque nos abeiramos do mysterium fidei (1Tim III, 9), da Sagrada Eucaristia; porque vamos tomar parte nesta Páscoa do Senhor, que resume e realiza as misericórdias de Deus para com os homens.

Fé. meus filhos, para confessar que, dentro de uns instantes, sobre esta ara, vai-se renovar a obra de nossa Redenção (Secreta do domingo IX depois de Pentecostes). Fé para saborear o Credo e experimentar, em torno deste altar e desta Assembléia, a presença de Cristo, que nos faz cor unum et anima una (At. IV, 32), um só coração e uma só alma; e nos converte em família, em igreja, una, santa, católica, apostólica e romana, que para nós é o mesmo que universal.

Fé, finalmente, filhas e filhos queridíssimos, para demonstrar ao mundo que tudo isso não são cerimônias e palavras, mas uma realidade divina, apresentando aos homens o testemunho de uma vida ordinária santificada, em Nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo e de Santa Maria.


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Sobre o dia 05 de junho...


Não postei nada deliberadamente, pois estava muito ocupada em praticar uma das facetas da 'ecologia humana': visitando alguns locais onde a caridade é praticada com o coração e não apenas para satisfação de vãs consciências... Doe seu tempo e não apenas o que sobra em seu bolso. Seja voluntário!




P.S.: Caridade não é assistencialismo puro e simples.

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